BOM PRA TODO MUNDO
Em busca de consensos, Ministério Público, Judiciário e sociedade civil destravam obras e amparam comunidades
Num mundo polarizado, exemplos de união de esforços e de bom senso mostram que a busca pelo bem comum é uma realidade possível
Última atualização: 30/06/2024 14:05
O risco de se desfazer do sonho de morar em condomínio fechado se transformou em obra para melhorar a mobilidade urbana numa cidade de 50 mil habitantes. Dinheiro arrecadado pela Justiça na aplicação de penas é investido na compra de drone para o combate ao crime e enfrentamento da dengue. Essa mesma fonte de receita ampara milhares de gaúchos castigados pelas cheias neste ano. Acordos costurados pelo Ministério Público (MP) garantem o bem-estar animal e fortalecem a atuação dos bombeiros em tempo de calamidade. O suor de empresários e de voluntários financia viaturas policiais. Conflitos judiciais que consumiam tempo e dinheiro resolvidos por meio da conciliação.
Num mundo polarizado, consensos nem sempre encontram terra fértil. Mas iniciativas de comunidades gaúchas, do Poder Judiciário e do Ministério Público mostram que é possível melhorar a vida em sociedade onde o bom senso frutifica. Prova disso acontece em Estância Velha, no Vale do Sinos. O que poderia virar uma longa disputa na Justiça se tornou a maior obra de mobilidade urbana que se tem notícia na cidade.
Esta história começa no final de 2020. Foi nesta época que uma denúncia inusitada chegou ao promotor de Justiça Bruno Carpes. “Uma das atribuições do MP é a questão da ordenação urbana. E foi informado que um condomínio da cidade restringia o direito de ir e vir das pessoas. Só que, legalmente, o condomínio seria um loteamento fechado, só poderia fazer uma fiscalização na entrada e saída, mas não impedir o acesso”, detalha o promotor.
A documentação confirmou a suspeita e o promotor se viu numa encruzilhada. Ou judicializava o caso e frustrava o sonho de centenas de famílias que adquiriram imóvel com a crença de viverem num condomínio fechado ou buscava um entendimento entre prefeitura e moradores. O bom senso entre as partes prevaleceu e a segunda opção aflorou.
“Tínhamos duas possibilidades. A primeira, que seria muito ruim para os moradores, era retirar a cancela e toda aquela configuração arquitetônica do condomínio. A segunda, a exemplo do que havia ocorrido anos antes no Litoral Norte, era que a associação dos moradores indenizasse o município pelos equipamentos urbanos de propriedade pública. Seguimos este segundo caminho por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC)”, explica Carpes.
Negociação intermediada pelo Ministério Público
Após quase dois anos de negociações que envolveram prefeitura, Associação do Condomínio Horizon, Registro de Imóveis e MP, o maior acordo do gênero que se tem notícia no Estado foi formalizado. Nele, a associação dos moradores se comprometeu a destinar R$ 7,64 milhões como forma de indenizar a cidade e manter as características do local. Projeto aprovado na Câmara de Vereadores chancelou o acordo.
“Este processo de definir o valor foi complexo. Depois de muita conversa e da boa vontade dos moradores, chegamos a um entendimento de usar o Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) médio do bairro como parâmetro. Isso tudo com a aprovação dos vereadores”, detalha o promotor de Justiça.
Moradores e MP defenderam que o recurso fosse destinado para uma obra pública que beneficiasse toda a cidade. “Foi uma condição para que não fosse para o Caixa Único do município e, efetivamente, servisse para o bem comum”, afirma Carpes. A decisão de onde investir o dinheiro coube à prefeitura. No final do ano passado, começou a obra que vai transformar a entrada do município.
Depois do acordo, mãos à obra
A ideia é reformular a entrada da cidade em dois quilômetros de extensão da Avenida Presidente Vargas, a partir do pórtico de acesso ao município. O projeto prevê uma série de melhorias, como asfalto novo nos dois sentidos da via, rotatórias, canteiro central, ciclovia, pista de caminhada e nova iluminação.
“O asfalto da entrada da cidade estava deteriorado, com rachaduras, buracos. Teríamos que mexer. Também estava dando alguns acidentes, motoristas fazendo retornos na contramão. Então, com o dinheiro extra do TAC, pensamos em ir além do básico e fazer algo duradouro para a comunidade”, explica o prefeito Diego Francisco.
Com os R$ 7,6 milhões do condomínio, a prefeitura injetou mais R$ 4,4 milhões e começou a tirar a obra do papel. Para não frear na burocracia, o próprio condomínio fez um chamamento público, nos moldes de uma licitação. Apesar de contratempos causados pelas fortes chuvas, a obra segue e a expectativa é que nos primeiros meses do segundo semestre fique pronta.
“Conheço Estância Velha há mais de 30 anos e moro aqui há 15. É a maior obra que já vi. Quando estiver pronta, vai ficar bom pra gente. Vai deixar a cidade mais bonita e o acesso mais seguro”, comenta o frentista Ângelo Hack, 43 anos, que trabalha em frente à Avenida Presidente Vargas.
Para o promotor de Justiça, o acordo trouxe vantagens para todos os lados. “Todo mundo ganhou com isso. MP e Judiciário porque se evitou mais um litígio, o condomínio que vai manter a estrutura idealizada, a prefeitura que conseguiu recursos para executar uma importante obra e toda a comunidade que terá o acesso da cidade revitalizado”, resume Carpes.
“Retornou para a cidade onde vivemos”, diz morador
Presidente da Associação Horizon, o advogado Elayyan Aladdin explica que quase a totalidade dos moradores comprou os imóveis convicta de que se tratava de um condomínio fechado. “A maioria foi pega de surpresa”, admite.
No entanto, de acordo com ele, alguns perceberam antes mesmo da denúncia ao MP que a situação não era aquela idealizada. “Quem se ateve detalhadamente na escritura, documentação, percebeu que havia algo diferente. Inclusive, já havíamos iniciado mobilização para conversão em condomínio. Neste meio tempo chegou a notificação do MP. Sempre nos mostramos dispostos a chegar a um consenso”, afirma.
Com a indenização já depositada numa conta destinada para as obras, o advogado explica que o dinheiro é liberado conforme o andamento dos trabalhos. “Pagamos conforme vem memorando do município autorizando.”
Para Elayyan, o que poderia ter se tornado motivo de dor de cabeça e frustração para 1 mil pessoas virou motivo de orgulho. “Há uma satisfação interna. Trouxe mais segurança jurídica para os moradores, tranquilizou todo mundo, e retornou para a cidade onde vivemos.”
Superdrone usado no combate à dengue foi comprado com pena pecuniária
O consenso entre condomínio e prefeitura é emblemático pelo valor expressivo, mas não se trata de caso isolado. A busca por entendimento em gabinetes de promotores e juízes tem estimulado acordos e penas alternativas em benefício de áreas como a segurança pública. O promotor Carpes explica que penas ou prestações pecuniárias cumprem este papel na esfera criminal. Elas servem como medida alternativa à prisão, punindo crimes de menor potencial ofensivo com o pagamento em dinheiro.
Neste contexto, quando foi aprovado o chamado Pacote Anticrime, no final de 2019, criou-se a figura do acordo de não persecução penal. Ele funciona como um acordo jurídico pré-processual entre o Ministério Público e o investigado, com a assistência do seu defensor. Nele, as partes negociam cláusulas a serem cumpridas pelo acusado, que podem incluir pagamento de valores. Ao final, o investigado será favorecido pela extinção da possibilidade de punição.
“Com esta novidade, tem havido pagamentos de valores mais altos, isso feito junto com o Poder Judiciário. Estes valores vão para o Fundo de Penas Alternativas, que são revertidos para a segurança pública”, explica Carpes. Inclusive, foi por meio deste fundo que a Guarda Municipal de Estância Velha adquiriu um drone com alcance de até oito quilômetros de distância e capacidade de 40 minutos de voo.
Além de fiscalizações rotineiras como na Balada Segura, o drone atende outras demandas. Em junho do ano passado, quando Lindolfo Collor, cidade vizinha de Estância Velha, enfrentou a pior enchente de sua história, o equipamento foi usado no resgate de dezenas de trabalhadores que ficaram ilhados pelas águas. “As equipes de resgate estavam com dificuldade de se locomover e o drone encontrou as pessoas. Como tem GPS, facilitou para que o resgate fosse ao ponto certo salvar aqueles trabalhadores”, lembra o secretário de Segurança de Estância Velha, Renan Mallmann.
Com a explosão de casos de dengue, o drone voltou a ser útil para a comunidade. Ele está sendo utilizado a serviço da Vigilância em Saúde em vistorias de locais de difícil acesso. “A intenção é averiguar denúncias de lugares com acúmulo de água, como casas com piscinas abandonadas”, detalha Mallmann.
Constantemente, a Guarda Municipal de Estância Velha apresenta projetos nos editais publicados pelo Poder Judiciário com recursos do fundo de penas pecuniárias. “Sempre conversamos antes com Brigada Militar, Polícia Civil, Bombeiros, para chegarmos a um consenso e conseguirmos ir estruturando todos os órgãos.”
Bom para todo mundo
Para o prefeito Diego Francisco, estes tipos de iniciativas auxiliam os gestores locais e as comunidades. Ele pondera que com as prefeituras cada vez mais assumindo demandas em áreas que constitucionalmente não são de sua alçada, como segurança pública e alta complexidade na saúde, toda fonte alternativa de recurso é mais que bem-vinda.
“Seja por meio de termos de ajustamento de conduta, taxa de regularização de obras, penas alternativas, temos o Programa de Incentivo ao Aparelhamento da Segurança Pública (Piseg) também, enfim, o importante é ter recurso para reverter em melhorias para a cidade. Se isso resolve conflitos, melhor ainda. Fica bom para todo mundo.”
Dinheiro das penas financiam projetos que vão além da segurança pública
O promotor Carpes lembra que os recursos das penas pecuniárias não se limitam a financiar órgãos de segurança pública. Instituições como Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apaes) e Liga Feminina de Combate ao Câncer costumam acessar o dinheiro.
De acordo com o Tribunal de Justiça gaúcho, só no período entre 2020 e 2022, foram repassados mais de R$ 36 milhões a 1,1 mil entidades e órgãos da administração pública. Juiz da Vara de Execuções Criminais (VEC) de Novo Hamburgo, Carlos Fernando Noschang explica que esses recursos são dispensados a favor de entidades de segurança, de educação e assistenciais. “Isso é feito através de editais anuais, mediante apresentação de projetos, que são analisados e aprovados, ou não, pelo Judiciário”, complementa.
O magistrado esclarece que os critérios para a prestação pecuniária, enquanto pena restritiva de direitos, são pena inferior a quatro anos, sem violência ou grave ameaça e réu primário. “Também é vedada para crimes hediondos.” Já para a transação penal deve ser delito com pena máxima igual ou inferior a dois anos - trata-se de acordo firmado entre o réu e o Ministério Público, no qual o acusado aceita cumprir pena antecipada de multa ou restrição de direitos e o processo é arquivado.
Carpes explica que entre os crimes que costumam ter acordos estão furtos, quando não há violência ou grave ameaça. “Se é um crime patrimonial, se exige a reparação do dano, o valor do objeto, mais uma prestação pecuniária. Até embriaguez ao volante sem gravidade, como ser pego numa blitz, pode entrar. No caso de estelionato, por exemplo, se devolve o dinheiro e se paga um valor a mais”, enumera.
Para o promotor de Justiça, a aplicação eficiente da medida acaba sendo benéfica para todos. “No caso de furto, ajudamos o erário a não ter o custo de um processo penal moroso, o réu primário evita ter antecedentes criminais e paga uma prestação pecuniária que vai beneficiar a coletividade.”
Carpes avalia que a resolução rápida de processos criminais tem outro ponto positivo. “O MP e o Judiciário conseguem focar na resolução mais célere de crimes graves, de criminosos de carreira, porque tudo entrava no mesmo bolo. Até porque não tem como falar em justiça sem celeridade”, defende.
Mais de R$ 180 milhões de apoio às vítimas das enchentes
Outro bom exemplo da aplicação das penas pecuniárias aconteceu neste ano, na maior tragédia climática da história do Estado. Os recursos arrecadados por este tipo de expediente foram fundamentais para ajudar vítimas das enchentes que castigaram o Rio Grande do Sul. Somente no mês de maio, quando as chuvas devastaram cidades inteiras, a mobilização do Poder Judiciário injetou R$ 180 milhões. A previsão é aproximadamente cem municípios gaúchos sejam atendidos.
Os valores são provenientes de verbas pecuniárias repassadas por tribunais de todo o País, somadas à destinação feita pelas Varas de Execuções Criminais (VECs) das Comarcas gaúchas e pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF) do Tribunal de Justiça do Estado (TJRS).
A mobilização nacional foi provocada por pedido do presidente do TJRS, desembargador Alberto Delgado Neto, e atendida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que editou normas que preveem e regulam eventuais transferências dos Tribunais de Justiça dos estados, dos Tribunais de Justiça Militar e dos Tribunais Regionais Federais, a partir dos respectivos juízos criminais.
Exemplo desta mobilização que ultrapassou fronteiras são os R$ 15 milhões destinados pelo TJ de São Paulo. “Todas aquelas penas pecuniárias, em todas as esferas da Justiça, estadual, federal, trabalhista e eleitoral, foram canalizadas para a conta da Defesa Civil do RS. O juiz do interior do Amapá, de onde for que tiver pena pecuniária, pode destinar o recurso para esta conta”, exemplifica o desembargador.
O presidente do TJRS lembra que o prazo da resolução assinada pelo presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, vale até dezembro. “A conta continua aberta e entrando recursos. A gente espera, com isso, atender em uma boa medida os municípios atingidos”, projeta. “Este recurso, com muito mais facilidade, chega na prefeitura, para que o prefeito de imediato possa auxiliar as pessoas atingidas”, detalha Delgado Neto.
Fiscalização e agilidade no repasse
A Defesa Civil gaúcha explica que um grupo de trabalho foi criado para definir como seria aportado o dinheiro. Ele é formado pelo TJRS (que é o intermediário do CNJ e a quem serão entregues as prestações de contas), Tribunal de Contas do Estado (que auditará o processo), Contadoria e Auditoria-Geral do Estado (Cage), Casa Civil, Casa Militar (a quem está vinculada a Defesa Civil estadual) e Secretaria de Estado da Fazenda.
O grupo de trabalho definiu que o repasse do dinheiro aos poderes públicos municipais será na modalidade “fundo a fundo”. Esse mecanismo foi criado pela Defesa Civil nas enchentes de 2023 com o objetivo de desburocratizar o repasse aos municípios atingidos por desastres. Por meio dele, as prefeituras podem acessar os valores em cerca de três dias depois da entrega do requerimento à Defesa Civil.
Após o recebimento dos valores, as prefeituras das cidades beneficiadas terão um prazo de seis meses para executar as ações de resposta, como socorro e assistência, e de restabelecimento, como medidas para garantir a segurança, habitabilidade e serviços para a população nas áreas atingidas.
Acordos mantêm fundo que atende demandas no pós-cheia
Consensos também abastecem o chamado Fundo para Reconstituição de Bens Lesados (FRBL). Acordos judiciais por danos causados a bens e direitos, além de valores decorrentes de medidas compensatórias estabelecidas em acordo extrajudicial ou termos de ajustamento de conduta (TACs), são fontes de receita deste fundo vinculado ao Ministério Público.
Nos últimos oito anos, o fundo do MP já injetou, por meio de editais, mais de R$ 60 milhões em ações de preservação de patrimônio histórico, nas áreas da segurança pública, saúde, educação ambiental e ensino da literatura negra, por exemplo.
Assim como ocorreu com as penas pecuniárias neste ano, o dinheiro do fundo vai ser utilizado nas necessidades deixadas pelas enchentes. “Em situações de calamidade pública, são admitidos projetos mesmo sem edital, devidamente justificado. No enfrentamento aos efeitos das enchentes de 2024, será lançado edital simplificado, para que se possa destinar adequadamente e com maior segurança os recursos”, explica o presidente do conselho gestor do FRBL, o subprocurador-geral de Justiça de Gestão Estratégica, João Cláudio Pizzato Sidou.
O conselho já aprovou a liberação de R$ 8,5 milhões para cinco projetos. Para o Corpo de Bombeiros, foi feito o repasse de R$ 1,44 milhão para aquisição emergencial de sete embarcações, a partir de projeto da Secretaria da Segurança Pública. O objetivo é diminuir o tempo de resposta nos casos de salvamentos e resgates como os que aconteceram durante as cheias. Dois barcos e cinco botes foram entregues à corporação no começo de junho.
Os demais projetos já aprovados, mas que estão na fase de habilitação para recebimento de recursos, preveem construção de 38 casas de interesse social em Arroio do Meio, no Vale do Taquari, e apoio no controle sanitário e bem-estar de animais atingidos pelas cheias em diferentes municípios e regiões. Por meio de recursos do FRBL, o governo do Estado pretende castrar e fazer a chipagem de 20 mil animais resgatados das águas e que foram para 354 abrigos.
A iniciativa prevê a contratação de hospitais veterinários de universidades gaúchas, que realizarão os procedimentos, especialmente, em cidades da Região Metropolitana, que concentram o maior contingente de animais.
Sidou reitera que os projetos foram apresentados em caráter emergencial pelas entidades beneficiadas e aprovados pelo conselho gestor em reuniões extraordinárias. “Há alguns projetos em análise e será lançado novo edital em breve, voltado ao enfrentamento dos efeitos das enchentes e atendimento de outras situações parecidas”, antecipa.
Conciliação resolve conflitos e prega a cultura do diálogo
Além dos acordos buscados nas esferas cível e criminal que abastecem fundos usados para financiar obras e projetos nas comunidades gaúchas, as conciliações viraram praxe no Poder Judiciário. Neste caso, o principal objetivo é resolver litígios sem a necessidade de inchar ainda mais a Justiça com novos processos, assim como o erário, e estimular a resolução de conflitos por meio do diálogo.
Somente no ano passado, os Centros Judiciários de Solução de Conflitos (Cejusc), responsáveis por realizar as audiências de conciliação, realizaram 15.037 acordos, aumento de 27,15% em relação ao ano anterior. Números que indicam a importância do método que existe desde 2010 na Justiça gaúcha.
Coordenadora do Cejusc de Novo Hamburgo, a juíza Andrea Hoch Cenne explica que causas cíveis em geral, como acidentes de trânsito, cobranças, dívidas bancárias, conflitos de vizinhança e direitos do consumidor, são tratadas nestes centros de solução de conflitos. Causas de família, como divórcios, pedido de pensão alimentícia, guarda de filhos e regulamentação de convívio, também, além de outros tipos de demandas.
“Além de gerar uma redução de demandas processuais e propiciar celeridade, os métodos autocompositivos possibilitam o restabelecimento de diálogo entre as partes. Assim, ainda que não seja possível um acordo, o diálogo, muitas vezes, é restabelecido, e esse é o principal ganho para a sociedade”, defende a magistrada.
Sociedade civil se une para fortalecer segurança pública
A busca por entendimento em benefício da coletividade não é estimulada apenas dentro da seara jurídica. Se por um longo tempo a população apenas reclamava da insegurança nas comunidades, cada vez mais deixa o papel de vítima para ser um ator importante na solução do problema. A parceria entre sociedade civil e poder público, vista fortemente neste ano durante os resgates nas enchentes, é presença constante na segurança pública gaúcha. Isso começou décadas atrás e ganhou impulso nos últimos anos.
Criados a partir do final da década de 70, os Conselhos Comunitários Pró-Segurança Pública (Consepros) são formados por pessoas da comunidade e atuam há décadas no apoio de forças de segurança, como Brigada Militar, Polícia Civil, Bombeiros e, mais recentemente, Guardas Municipais.
Presidente da Federação dos Consepros (Feconsepro), André Girelli explica que os conselhos garantem agilidade e compras por preços justos de equipamentos e serviços essenciais para a atuação das forças de segurança. “Os Consepros não enfrentam a burocracia que o poder público precisa lidar. E muitas vezes conseguem melhores fornecedores, mais próximos da realidade local, que garantem uma manutenção adequada, por um preço até mais justo”, analisa.
Cita como exemplo os investimentos em videomonitoramento das cidades, que se popularizaram entre as prefeituras gaúchas. “Por meio do poder público, muitas vezes o fornecedor é de longe, não envia todos os itens licitados. Isso gera demandas judiciais. Até tudo ser resolvido, a tecnologia já está defasada e quem perdeu foi a população.”
Na Região Metropolitana, um dos Consepros mais antigos fica em São Leopoldo. Presidente do conselho, Rogério Daniel da Silva afirma que a principal fonte de receita para auxiliar as forças de segurança provém do empresariado. “Nós fazemos um lobby forte junto aos empresários para doarem via Piseg”, explica.
O Piseg, citado por Rogério, é mais um exemplo desta busca pelo bem comum por meio da união de esforços. O Programa de Incentivo ao Aparelhamento da Segurança Pública (Piseg) permite a empresários destinar até 5% do saldo devido de ICMS ao Estado para serem aplicados na segurança pública. O recurso pode ser usado para comprar itens como veículos, armamentos, munições, capacetes, coletes balísticos, rádios comunicadores, equipamentos de rastreamento, de informática, bloqueadores de celular, câmeras e centrais de videomonitoramento.
Entre outubro de 2019, quando foi criado, até o final do ano passado, o Piseg reverteu R$ 139 milhões para o aparelhamento das instituições de segurança pública do Estado. Deste valor, R$ 50 milhões foram arrecadados apenas no ano passado. Dos 497 municípios gaúchos, 215 foram contemplados com recursos do programa. Mais de três mil itens, entre viaturas, armamentos e equipamentos, já foram comprados.
Nesta união de esforços, o Consepro de São Leopoldo conseguiu, por exemplo, 20 viaturas semiblindadas para Polícia Civil e Brigada Militar. Uma nova central de polícia e a reforma do quartel da BM estão no radar. “Atuamos forte com demandas pontuais. São consertos de viaturas, aquisição de equipamentos. Esta articulação faz diferença", defende Rogério.
Fim do sucateamento nos quartéis
Comandante do 25º Batalhão de Polícia Militar, responsável pela região de São Leopoldo, tenente-coronel Flori Chesani Júnior observa que embora não haja a participação direta do Consepro, o conselho auxilia na interlocução entre a Brigada Militar e empresários para que eles destinem parte do saldo devido de ICMS, via Piseg, para a compra de equipamentos e armamentos. “O Piseg e as penas pecuniárias são muito importantes para a BM, pois possibilitam que os policiais militares estejam melhores equipados, a fim de fazer frente à criminalidade”, defende o oficial.
Para Chesani, esta participação popular e a possibilidade de acesso a novas fontes de receita mudaram o cenário na segurança pública gaúcha. “O Estado vem em uma evolução muito grande em relação ao aparelhamento da segurança pública, o que não nos permite mais falar de sucateamento de viaturas e até falta de combustível em quartéis da BM. Certamente um dos propulsores disso foi o Piseg e participação dos Consepros”, analisa o comandante.