SEMANA DA CONSCIÊNCIA NEGRA
Documentários resgatam a participação de pessoas negras no desenvolvimento da região
O Negro nos 200 Anos da Imigração Alemã e Rosa Morena: A Presença Negra na Cidade das Rosas dão visibilidade ao papel da população negra no Vale do Sinos
Última atualização: 19/11/2024 13:12
A história sobre o legado de famílias negras na região ganha destaque por meio de documentários desenvolvidos e apresentados neste mês. Não é por acaso. Novembro, mês da Consciência Negra, terá pela primeira vez o dia 20 de novembro como feriado nacional em referência à morte de Zumbi dos Palmares, líder quilombola brasileiro que lutou contra ataques ao maior quilombo do País e é símbolo de luta dos negros contra o racismo.
As produções audiovisuais retratam a trajetória e representatividade nos segmentos da economia, cultura, educação, religião, gastronomia, e são desenvolvidas por produtores culturais negros. Eles são Fábio Lima, morador de Novo Hamburgo, autor de O Negro nos 200 Anos da Imigração Alemã, e Ismael Boeira, de Sapiranga, com Rosa Morena: A Presença Negra na Cidade das Rosas.
Especialista em História e Cultura Afro-brasileira, a pedagoga Fernanda Duarte de Oliveira reforça que os documentários produzidos na região são registros importantes. "Por séculos, a comunidade negra sofreu um apagamento histórico e teve sua imagem construída na base do processo de escravidão e da falsa ideia de incapacidade de produzir, contemplar e ser intelectualmente hábil. Nos ver nas telas, nos livros, nas músicas, auxilia nesse processo de resgate da nossa identidade e da reconstrução da nossa história", salienta.
Fernanda salienta a importância de registrar e contar às próximas gerações as história do povo negro. "Vivemos um ano em que a celebração dos 200 anos da imigração precisa ser ampliada para compreendermos melhor a presença negra e indígena neste espaço, muito antes da chegada dos alemães. Não se trata de uma disputa de uma narrativa, mas sim, dar a visibilidade para que todos compreendam os papéis ocupados na nossa sociedade. Os negros ora escravizados, ora libertos, mas com uma vida precária e às margens sociais, construíram literalmente este território. Esta história precisa ser contada", defende.
Jailson Barbosa, autor do texto que apresenta o tema do samba-enredo da escola Cruzeiro do Sul para o carnaval 2025, Da África ao África - o Vale Germânico também é Negro, salienta que as produções historiográficas sobre o negro, até então, vinham sendo feitas a partir da produção de pessoas brancas. E agora existe uma nova realidade com os produtores negros. "Os documentários são registros importantes que validam uma história, são registros de memórias", frisa. “É importante ter uma perspectiva negra sobre a nossa história, sobre as nossas contribuições", arremata.
"Se hoje lutamos por essa visibilidade com mais oportunidades e canais de divulgação das nossas pautas, foi por conta de homens e mulheres negros e negras que nos antecederam nas lutas. Pessoas como Oliveira Silveira e os membros do Grupo Palmares, que na década de 70 foi uma associação de ativismo político e cultural do movimento negro do Brasil e já fazia ressoar pautas que hoje ainda lutamos. O movimento negro nestes anos se manifestou e manifesta através da arte, da cultura, da educação, da musicalidade, das escolas de samba, do hip hop e muitas outras formas luta para manter-se efetivo na nossa cidade", frisa Fernanda.
Recursos descentralizados para diversidade
"Diretor do Departamento de Fomento da Secretaria de Estado da Cultura (Sedac-RS), Rafael Balle afirma que, atualmente, há mais recursos disponíveis para produções do gênero. "Estamos vivendo um momento muito especial para as políticas públicas de cultura. Pela primeira vez há muitos recursos, especialmente descentralizados, ou seja, da União para estados e municípios, e a maior parte desse recurso é para fomento direto", relata.
Com os recursos descentralizados, salienta, há um processo de ampliação exponencial de agentes culturais que estão tendo acesso agora às políticas públicas de fomento. Com essa mudança, a política de cotas foi ampliada. "Na política nacional da Lei Aldir Blanc, por exemplo, aumentou de 30% para 40% contemplando pessoas negras, indígenas e pessoas com deficiência. Assim, garante-se que uma diversidade de pessoas também seja protagonista na figura do proponente, que é aquela pessoa que recebe o recurso, que pensa o projeto", frisa.
A disseminação de histórias de negros no Rio Grande do Sul, continua Balle, é fundamental para o Rio Grande do Sul, por isso, alguns pilares precisam ser seguidos. "Primeiro é democratizar o acesso aos recursos com a facilitação por meio digital. Depois, com uma diversidade de atividades que fomentamos para desenvolver os setores, ao ponto de conseguir essa representatividade do que é a cultura do nosso Estado, que de fato é bastante plural. E, por fim, tudo precisa chegar na população, que tem seus interesses, quer se ver representada, quer ter esse sentimento de pertencimento em relação ao seu Estado", sustenta.
Produtor do documentário revela o que não ouviu em sala de aula na infância
Ismael Boeira, 30 anos, natural de Sapiranga, é professor de educação básica e doutorando em Diversidade Cultural e Inclusão Social pela Universidade Feevale. Ele cresceu sem ouvir certas histórias sobre seu povo. Diferentemente do que viveu, especialmente na infância e adolescência, seu documentário pretende deixar um legado para as próximas gerações, mostrando que famílias negras tiveram um papel importante no desenvolvimento de Sapiranga.
Alunos de dez escolas assistiram ao documentário "Rosa Morena: A Presença Negra na Cidade das Rosas", quando ouviram relatos de 16 pessoas que viveram em Sapiranga desde o processo de emancipação da cidade. "Essas pessoas contam como foi viver como uma ‘Rosa Morena' em uma cidade que, na época da emancipação, tinha uma presença alemã muito forte devido à colonização de imigrantes alemães na região. O documentário mostra como foi estudar, ou não ter o direito de estudar; muitas delas foram empregadas domésticas das famílias influentes da cidade e enfrentaram o racismo", resume.
Ao aprofundar seus estudos sobre a cidade, Boeira teve acesso a fatos que desconhecia. O antigo nome dessa que hoje é Sapiranga era “Padre Eterno” e fazia referência ao Capelão Ignácio Coelho dos Santos, um negro muito velho (“steinalter mann”) por volta dos anos 1780. "Isso indica que já existia uma população negra nessa região. Antes de Sapiranga se tornar cidade, a área era conhecida como Padre Eterno. Contudo, nas escolas e em todos os espaços nos ensinam que Sapiranga surge com a imigração alemã, mas, na verdade, isso não é toda a história, certo?", comenta Boeira, lembrando que a Igreja do Padre Eterno, que ilustra a capa do documentário, está abandonada e em ruínas.
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Outras descobertas também surgiram nos depoimentos. Uma delas foi sobre um bairro da cidade: o Centenário. Batizado assim em homenagem aos 100 anos da imigração alemã, chamava-se originalmente bairro África. "O apagamento histórico também se espalha através desses processos", observa.
Outra lembrança de Boeira é sobre o CTG Pedro Serrano. No início da história de Sapiranga, o espaço de tradições gaúchas era liderado por um homem negro, conhecido como Pai João, que foi um dos alicerces do fomento da cultura tradicionalista. Por isso, o local era chamado de "cabana do Pai João". "Assim como o bairro chamado África era visto como algo pejorativo, a cabana do Pai João não podia manter esse nome, pois fazia referência à religião de matriz africana", conta.
Seu documentário de 40 minutos visa incentivar o questionamento sobre o apagamento da história. "Queremos resgatar essas histórias, mostrando que aqui também é uma região com presença negra e que teve uma contribuição significativa na construção da sociedade", finaliza Boeira, que desenvolveu o documentário com os diretores Ananda de Oliveira, Cátiano Ott e Jessé Boeira.
O Negro nos 200 Anos da Imigração Alemã mostra histórias, trabalho, religião e planos para futuro
Ao olhar para a projeção do documentário O Negro nos 200 anos da imigração alemã, as cores da bandeira germânica colorem o visual, mas é a imagem localizada no centro que chama atenção. São os traços estilizados do rosto de um homem negro que retratam a presença desse povo na região.
O documentário de 23 minutos tem na direção geral Fabio Lima, um hamburguense que nasceu no bairro Primavera e tem forte envolvimento com a cultura carnavalesca. O roteiro do material audiovisual é assinado por ele, Renan da Silva Neves e Margarete Fagundes.
Ele é dividido em partes históricas, do trabalho, religião e o que esperam para o futuro. "O conteúdo editado dá a oportunidade de dar voz. O que é comentado ali no bairro, que é falado entre a família, tudo fica muito restrito. E a intenção é tirar essas vozes para propagá-las para fora", sustenta.
Ao todo, 16 pessoas integram o documentário que serve de registro histórico para a comunidade. "É para demonstrar que alguém contou e registrou porque há história que foi apagada", explica o diretor. Professores, empresários, sapateiros, profissionais da área cultural e jornalistas dão voz ao povo negro por meio de sua participação.
Quem assistir ao documentário ouvirá que a região prosperou porque existiu o labor negro, que o bairro África virou Guarani, de onde saiu a Escola de Samba Cruzeiro do Sul para a Rua da Limpeza, no Primavera.
Como assistir
Rosa Morena: A Presença Negra na Cidade das Rosas: o documentário pode ser visto no canal do YouTube de Ismael Boeira e também pelas redes sociais @projeto.rosamorena.
O Negro nos 200 anos da imigração alemã: o documentário terá estreia oficial para a comunidade no dia 30 de novembro, às 11 horas, na 2ª Conferência Ubuntu - Resgatando nossa Identidade, no Campus 2 da Universidade Feevale, no Espaço Cosmos, no 3º andar do prédio vermelho.