Homenagem, memória e história. São Leopoldo é um dos locais escolhidos para a gravação do filme em forma de documentário “Doutor Araguaia”, que vai contar a trajetória do médico João Carlos Haas Sobrinho, nascido no município, em 1941, e que lutou na Guerrilha do Araguaia, durante a ditadura militar, sendo morto na região de Xambioá (TO), aos 31 anos.
A produção contará com diversos depoimentos e a primeira parte já foi gravada, em Porto Franco (MA), Palmas e Xambioá (TO), Brasília (DF), Goiânia (GO), São Paulo (SP), de março a julho. Agora, as gravações estão sendo realizadas no Rio Grande do Sul, em São Leopoldo e Porto Alegre.
No último sábado (2), a parte final da coleta de depoimentos em São Leopoldo ocorreu na sede do Partido Comunista do Brasil (PC do B), no Centro. No local, o leopoldense e autor da revista em quadrinhos “Doutor Araguaia, A história de João Carlos Haas Sobrinho”, Diego Moreira, foi entrevistado.
Ressignificar
Diretor da produção, Edson Cabral contou que é um pesquisador da Guerrilha de Araguaia e que tem muitos amigos e conhecidos que foram atendidos por Haas em sua passagem pela região. Os muitos relatos motivaram a criação do projeto, que é acompanhado pela família de Haas, especialmente pela irmã, Sônia Maria Haas.
Cabral explica que um grande trabalho de pesquisa foi feito em função do documentário, que traz depoimentos de pacientes, amigos, colegas que conviveram com o médico, familiares, entre outros. No Sul, o objetivo é contar a narrativa da infância de Haas. “Quisemos trazer em vídeos e depoimentos o que as pessoas falam de João Carlos, porque temos dois vazios a serem preenchidos e respondidos: o dos familiares e amigos aqui do Sul, que não entenderam porque ele sumiu, para onde ele foi e como foi, e o vazio daquelas pessoas que ele cuidava no Araguaia, porque ele atendia todo mundo, e do dia pra noite foi embora também”, ponderou o diretor.
“Essa construção é o que queremos trazer para o filme. Queremos ressignificar a história para quem sentiu aqui a saudade dele e para quem lá sentiu a ausência dele”.
Inserção cultural
Em São Leopoldo, estão sendo gravados depoimentos e imagens em vários pontos, como no busto em homenagem a Haas, instalado na frente da sede do Centro Administrativo. Ontem, a equipe foi também à Lomba Grande, em Novo Hamburgo, região onde os avós de Haas moravam, para coletar imagens de danças tradicionais gaúchas, fazendo uma inserção cultural do Rio Grande do Sul no documentário, que contará também com trilha sonora especial.
Além do documentário, o diretor destaca que a intenção é produzir ainda subprodutos, como um vídeo institucional da guerrilha, e um mapa estilizado com o trajeto que o médico fez (saindo de São Leopoldo, passando por várias cidades até o fim de sua vida).
A equipe de gravação fica no Estado até a próxima quinta-feira (7). Depois, deve fazer mais duas entrevistas em Brasília e Goiânia.
Gravações nesta terça, na Unisinos
Contando com o apoio do Instituto Humanitas Unisinos (IHU), curso de Jornalismo e curso de História da Unisinos, Sônia Haas e Edson Cabral participarão de uma roda de conversa sobre a trajetória de João Carlos Haas Sobrinho, nesta terça-feira (5), às 15h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU, no campus de São Leopoldo da Unisinos.
O encontro será registrado em vídeo para compor a última etapa de gravações do documentário Doutor Araguaia no estado.
“João foi uma luz que passou por aqui”
Acompanhando todo o projeto desde o início, a irmã de Haas, Sônia Haas, entende que a realização do documentário é mais que uma homenagem. “É memória. Nós familiares de desaparecidos políticos, temos uma luta muito árdua e de muitos anos. O João Carlos foi morto há 51 anos, então a gente busca pela verdade, pela abertura dos arquivos, pelos restos mortais – que só duas famílias conseguiram localizar –, pois nossos pais morreram sem poder sepultar seus filhos. Meus pais eram católicos e queriam muito fazer esse ritual de despedida e não tiveram esse direito”, disse.
“Esse trabalho está sendo muito emocionante para mim, porque está juntando o que fiz durante toda minha vida. Todos os relacionamentos que eu fui construindo na minha vida, a minha busca, só encontrei pessoas maravilhosas nesse caminho. Eu praticamente segui as pegadas de João Carlos e agora estou novamente seguindo as pegadas dele, porque estou documentando, gravando. E isso é muito importante, porque vai ficar para a memória, para outras gerações, uma história que tem que ser contada e ainda não foi”, complementou Sônia, contando a trajetória de luta do irmão e resumindo o sentimento que ficou: “Eu acho que João foi uma luz que passou por aqui”.
Lançamento em 2024
A intenção é fazer o lançamento do documentário no ano que vem, em 24 de junho – data do nascimento de Haas. Segundo o diretor Edson Cabral o lançamento deve ser feito na cidade de Porto Franco (MA), para onde Haas se mudou em 1967. Em São Leopoldo, conforme Cabral, há possibilidades de exibição durante as comemorações do Bicentenário e durante a Feira do Livro 2024.
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O projeto já conta com o apoio das prefeituras de São Leopoldo e de Porto Franco (MA), além da parceria da Fundação Maurício Grabois, que transfere conteúdos importantes ao documentário.
Quem foi o Doutor Araguaia
João Carlos Haas Sobrinho nasceu em São Leopoldo no dia 24 de junho de 1941. Formou-se em medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), onde foi presidente do centro acadêmico da faculdade. Filiado ao PC do B, em 1967, João Carlos chegou a Porto Franco (MA), onde cuidou de centenas de pessoas desassistidas pelo Estado brasileiro, e ainda montou um hospital comunitário.
De Porto Franco foi para a região do Rio Araguaia, no Tocantins, em 1969, para auxiliar na Guerrilha do Araguaia, na região de Xambioá, ao lado de outros militantes do PC do B, enfrentando a ditadura civil-militar. O regime de exceção no Brasil de 1964 a 1985, utilizou o expediente de rigorosa censura aos meios de comunicação para que os fatos não chegassem ao conhecimento público.
A hipótese mais forte, de acordo com a família, é que o médico tenha sido morto em combate com militares em 30 de setembro de 1972. Seu corpo nunca foi localizado.
Além de João Carlos, outros três gaúchos foram mortos na guerrilha do Araguaia: José Huberto Bronca, Cilon da Cunha Brum e Paulo Rodrigues, cujos restos mortais também não foram encontrados.