PROBLEMA HISTÓRICO

Cooperação e apoio financeiro para enfrentar judicialização na saúde

Justiça gaúcha concede até recursos financeiros ao Estado, que tem aplicado o dinheiro para atender demandas que costumam chegar aos tribunais. Instituições como Ministério Público e Defensoria Pública têm como diretriz usar o bom senso para garantir a assistência adequada aos pacientes

Publicado em: 20/08/2024 20:13
Última atualização: 20/08/2024 20:21

Por um longo tempo, a rotina de Adão Ladi da Rosa, hoje com 72 anos, teve como “trilha sonora” o barulho persistente das máquinas no curtume onde trabalhou entre as décadas de 80 e 90. Naquele tempo, protetor auricular era algo difícil de falar, quem dirá de usar. A conta chegou. “Com 50 anos, comecei a ficar surdo”, lembra Adão.

À medida que a dificuldade de audição aumentava, cresciam também as reclamações de familiares. “Eles falavam e eu não ouvia, embaralhava as palavras”, conta o aposentado. Quanto menos ouvia, menos falava. “A gente se encabula de ficar perguntando o quê? Daí eu não falava mais com as pessoas.”


Seu Adão começou a perder a audição gradualmente desde os 50 anos. Aos 72, voltou a ouvir Foto: Ermilo Drews/GES-Especial

O isolamento de Adão teve fim no começo de julho. No Centro Especializado de Reabilitação (CER) IV, em Novo Hamburgo, recebeu duas próteses auditivas e pôde contar sua história após anos de silêncio. O centro é referência para 42 cidades em reabilitações auditiva, visual, intelectual e física.

Com média de cem atendimentos ao mês só na reabilitação auditiva, o CER IV vai receber um reforço no caixa para atender mais pessoas como o Seu Adão. De R$ 154,7 milhões repassados pelo Tribunal de Justiça ao Estado (TJRS), R$ 107 milhões serão usados pela Secretaria Estadual da Saúde (SES) para ampliar atendimentos em diferentes especialidades. A ideia é beneficiar mais de 10,6 mil pacientes. Parte deste dinheiro vai para o centro de reabilitação em Novo Hamburgo, permitindo que mais pessoas voltem a ouvir.

Secretária Estadual da Saúde, Arita Bergmann explica que parte do recurso repassado pelo TJRS foi aplicada para enfrentar um problema que costuma “bater à porta” da própria Justiça. “Já investimos mais de R$ 13 milhões destes valores para ampliar e qualificar serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso ajudou a reduzir a judicialização de casos envolvendo pacientes, como o tempo de espera por cirurgias.”

A secretária detalha que o repasse do TJRS deve reduzir ações judiciais especialmente em três especialidades, uma delas a própria reabilitação auditiva. Entre 2022 e 2023, foram 55 ordens judiciais concedidas a pacientes contra o Estado para garantir a assistência adequada na área. No mesmo período, foram R$ 3,5 milhões bloqueados judicialmente apenas para casos de feridas crônica e escoliose pediátrica - desvio lateral da coluna que tende a se agravar sem tratamento. “Essas são áreas que têm uma demanda judicial expressiva”, observa Arita. 


Prótese auditiva permite que Seu Adão volte a ouvir. Recurso do Tribunal de Justiça vai ajudar que mais pessoas tenham acesso ao equipamento Foto: Ermilo Drews/GES-Especial

Milhares voltarão a ouvir

No caso da reabilitação auditiva, a expectativa da SES é que os recursos do Judiciário reduzam sensivelmente a fila de espera, atualmente em 17,8 mil pessoas. A previsão é investir R$ 20 milhões para a compra de 12 mil aparelhos de ampliação sonora individual. Estes equipamentos permitem que outras pessoas tenham a mesma sensação que Seu Adão pôde ter: voltar a ouvir. A ideia é que mais de seis mil pacientes, entre adultos e crianças, sejam atendidos em 15 cidades.

Em Novo Hamburgo, a diretora técnica do CER IV, Eliane Fagundes Fernandes, afirma que a intenção é justamente ampliar os atendimentos. “Recebemos, em média, cem pacientes ao mês só na reabilitação auditiva, mas queremos chegar a mais, até 500 pacientes, ser referência no Brasil neste tipo de assistência”, projeta.

Fonoaudióloga que atua no centro, Daiani Rempel explica que depois que a atenção básica encaminha o paciente ao CER IV, com aval do Estado, o processo até a colocação da prótese auditiva costuma levar três meses. “Muitos pacientes chegam aqui como o Seu Adão, isolados, sem interagir com familiares. A prótese acaba beneficiando toda a família”, avalia.

Apesar de a maioria dos pacientes ser composta por idosos que foram perdendo a audição com o passar do tempo, o centro de reabilitação também ajuda crianças. “Temos o teste da orelhinha, que é obrigatório. Com isso, se percebe antes casos de perda auditiva congênita. Antigamente, muitos pais só percebiam isso na idade escolar. Então, protetizamos desde bebês, passando por adolescentes, adultos jovens até idosos.”

Daiani frisa que, independentemente do perfil do paciente, presenciar uma pessoa voltando a ouvir é sempre comovente. “Poder ver um idoso retomar o convívio social, deixar o isolamento que a perda de audição causa, ver a alegria dos pais com o filho ouvindo, é algo enriquecedor.”


Daniani frisa que próteses permitem até o retorno dos pacientes no convívio familiar Foto: Ermilo Drews/GES-Especial

Para onde vai o dinheiro do Tribunal de Justiça

Além dos R$ 20 milhões do TJRS para a reabilitação auditiva, outros R$ 7 milhões vão financiar, ao longo do ano, o tratamento de 1.260 pacientes com feridas crônicas, decorrentes de doenças como a diabetes. Mais R$ 6 milhões permitirão o atendimento de 107 pacientes entre zero e 21 anos com escoliose pediátrica que estão à espera de cirurgia corretiva. Com o mutirão, será praticamente zerada a fila no Estado, atualmente com 124 pessoas.

Estes R$ 33 milhões para estas três especialidades fazem parte do aporte de R$ 107 milhões, que serão utilizados como custeio, ou seja, na contratação de atendimentos e tratamentos ou na aquisição de medicamentos. Os demais R$ 47,7 milhões serão destinados a cinco hospitais para aquisições de equipamentos e obras de reforma e ampliação dos espaços físicos.

Além dos R$ 154,7 milhões direcionados em 2024, o TJRS celebrou outro termo de cooperação com a SES em 2022, no qual repassou mais R$ 94,6 milhões para ampliação da realização de exames e procedimentos diagnósticos em oncologia, aquisição de equipamentos e reforma de áreas SUS no hospital Santa Casa de Porto Alegre.

Juíza-corregedora, Nadja Mara Zanella explica que o objetivo deste termo de cooperação foi reduzir a fila de pacientes, situação agravada com as restrições impostas a partir da pandemia. “Tais iniciativas beneficiam a população gaúcha atendida pelo SUS e reduzem a judicialização”, atesta a magistrada. Ela destaca que os valores repassados são remanescentes “da boa gestão econômica do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul”.

Mais de 60 mil ações tramitam na Justiça gaúcha

Atualmente, tramitam no Poder Judiciário gaúcho mais de 60 mil ações contra entes públicos relacionadas a prestações de saúde. De acordo com a juíza-corregedora, o número se mantém estável nos últimos 18 meses. A magistrada atesta que há preocupação constante do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul quanto ao tema, sendo desenvolvidos projetos pela Corregedoria-Geral da Justiça e pelo Comitê Executivo Estadual da Saúde/CNJ.

“Um dos projetos implantados é a Urca-Saúde, unidade especializada na matéria, que presta assessoria a magistrados em 65 comarcas, serviço que está em ampliação para abranger todas as unidades”, exemplifica Nadja. “Além disso, os magistrados contam com notas técnicas elaboradas pelo Departamento Médico Judiciário, que os municiam com informações relevantes sobre o tratamento ou medicamento pleiteado antes que a decisão seja proferida”, complementa.


Mais de 60 mil ações contra entes públicos relacionadas à saúde tramitam no Judiciário gaúcho Foto: Adobe Stock

Judicialização impacta na gestão pública, mas serve como termômetro

Secretária estadual adjunta da Saúde, Ana Costa destaca que a judicialização por medicamentos é mais comum, em comparação a tratamentos. Ainda assim, ambas as demandas impactam no orçamento. “Há medicamentos de alto custo com dose única e valor muito elevado, assim como tratamentos contínuos, cujo fornecimento, somado o período de atendimento, alcança valores muito altos.”

Ana admite que a busca via judicial prejudica a gestão de saúde no Estado porque interfere no gerenciamento, compromete o planejamento orçamentário das ações na área e afeta a ordem regular de atendimento das demandas. Ainda assim, pondera que a judicialização pode servir como um “termômetro importante” para os gestores. “Pois pode indicar problemas na oferta.”

Para o promotor de Justiça Leonardo Menin, a judicialização na saúde não é um mal em si, quando bem aplicada. “É um meio pelo qual se garante o acesso à saúde para as pessoas”, pontua. “A prioridade do Ministério Público com relação ao direito à saúde pública é fazer com que ele se concretize para todas as pessoas”, salienta.

Coordenador do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos e da Proteção aos Vulneráveis do Ministério Público, Menin lembra que é atribuição dos promotores de Justiça a tutela do direito coletivo à saúde, buscando a garantia do cumprimento da legislação para todos. “Bem como atuando, de forma resolutiva, junto aos gestores públicos. Isso reduz e racionaliza o número de demandas individuais”, observa.

MP se preocupa com racionalização dos números


Promotor de Justiça Leonardo Menin pondera que judicialização não é um mal em si, quando bem aplicada Foto: Tiago Coutinho/Imprensa MPRS

Menin admite que é preciso equilíbrio em relação às demandas judiciais. “O Ministério Público também se preocupa com a racionalização dos números de ações de saúde, a fim de que não haja sobrecarga desnecessária dos cofres públicos.”

Neste contexto, o promotor cita mobilizações feitas com outras instituições, como Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para pensar, conjuntamente, nas melhores alternativas em relação a situações recorrentes na área da saúde. Ele cita como exemplo prático o termo de cooperação entre CNJ e Ministério da Saúde para capacitar profissionais da área médica que compõem os Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (Natjus).

Estes núcleos vinculados ao Poder Judiciário têm como objeto proporcionar aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais subsídios técnicos para a tomada de decisão com base em evidência científica nas ações relacionadas com a saúde.

Cremers auxilia em decisões mais assertivas

Termo de cooperação mútua assinado entre Ministério Público e Conselho Regional de Medicina do Estado (Cremers) também tem ajudado a enfrentar as demandas judiciais na saúde, embasando tecnicamente pareceres de promotores de Justiça em pedidos de medicamentos e tratamentos feitos via Judiciário. Na época da assinatura do termo, em 2019, o então subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais, Marcelo Lemos Dornelles, pontuou que a cooperação vinha no esteio da priorização do MP de buscar a resolução de conflitos de forma extrajudicial.

De acordo como presidente do Cremers, Eduardo Neubarth Trindade, um dos objetivos é que o conselho preste consultorias a promotores e procuradores em casos que necessitam de conhecimento técnico mais aprofundado. Paralelamente, o termo prevê que o MP ajude a coibir ações que violem prática ilegal da medicina.

“Temos dezenas de câmaras para dar este subsídio técnico, para verificar se há evidências de que aquela intervenção vai dar o resultado esperado ou se precisa daquela celeridade na decisão”, observa o médico. Ele frisa que a independência do conselho regional é fundamental neste sentido. “Como órgão técnico, científico, sem vinculação e conflito de interesses, ele pode fornecer estes pareceres.”

Conforme Trindade, o Cremers, por meio de suas câmaras técnicas, já emitiu dezenas de laudos, e não só para embasar pareceres de promotores. “Podemos atender também o Judiciário e fornecer para toda a sociedade quando demandados. Temos todas as especialidades nas câmaras técnicas, neurologia, aparelho digestivo, nefrologia, área da oncologia e reprodução humana, estas duas estão sendo muito demandadas.”

Para o médico, a judicialização na saúde é sintoma de que a situação não anda bem na área. “É prejudicial a todo mundo. Ou porque se está deixando de oferecer um tratamento que é necessário para alguém, de uma forma indevida, ou porque tem todo um planejamento e se fura isto com tratamentos que não são realmente benéficos para a pessoa, e gera mais custo para o Estado.”

Trindade defende que o embasamento científico sobre o assunto é primordial para equalizar a expectativa de pacientes com os orçamentos disponíveis. “Os recursos na área da saúde, seja pública ou suplementar, são finitos. Muitas vezes é cobertor curto, destapa o pé para cobrir o rosto. E se está se lançando mão da judicialização é porque algum destes lados está com problemas. Será que se está ofertando muito pouco para os pacientes ou será que está se pedindo muito mais que o necessário? É isto que precisa ser avaliado.”


Presidente do Cremers, Eduardo Neubarth Trindade destaca termo de cooperação com o MP Foto: Cremers/Ascom

Leitura crítica das evidências é fundamental

O presidente do Cremers pontua que a análise crítica das evidências se mostra ainda mais necessária com o avanço da medicina e remédios que chegam ao mercado com valores que extrapolam milhões de reais, como aconteceu com o zolgensma, indicado para crianças com Atrofia Muscular Espinhal (AME). Com custo de mais de R$ 10 milhões anos atrás, famílias de pacientes precisaram recorrer a campanhas e à Justiça para garantir a medicação e a melhora na expectativa e qualidade de vida de crianças.

“É importante a leitura crítica das evidências para ver o custo efetividade destes novos medicamentos e tratamentos. Será que o estudo demonstra a melhora da expectativa de vida, a cura? É um estudo sério, será que não tem falhas metodológicas? Será que tem conflito de interesse da indústria? Também não podemos travar os avanços técnico-científicos que existem. Por isso, é preciso fazer uma leitura crítica, e isso tem que ser dado por um órgão independente, que não tenha conflitos de interesse”, pontua.

Esta premissa, defende Trindade, deve servir como guia para os gestores públicos. “É preciso tornar cada vez mais transparente o que é e o que não é ofertado. E fazer o Estado, seja prefeitura, seja governo estadual e União, fazer a leitura crítica das evidências, colocar cronograma para incorporação de novas tecnologias”, sugere o médico.

Defensoria Pública tenta esgotar possibilidades antes de acionar o Judiciário

Uma das portas onde pacientes com dificuldades em obter tratamento e medicamento batem é a da Defensoria Pública. Dirigente do Núcleo de Defesa da Saúde (Nuds) da Defensoria Pública do Estado (DPE/RS), Roberta Eifler Barbosa explica que o atendimento, nestes casos, divide-se em duas etapas. Primeiro se busca a resolução administrativa do pedido junto ao sistema de saúde. Caso a tentativa seja infrutífera, se aciona o Judiciário. Além de agir em casos específicos, a instituição fiscaliza o Poder Público e articula políticas públicas para população que precisa acessar os serviços de saúde.

A defensora pública afirma que a busca é sempre pelo consenso, acionando a Justiça em último caso. “A instituição tem um importante papel na atuação extrajudicial ao conseguir dialogar diretamente com o Estado na tentativa da solução antes da ação judicial. A judicialização da saúde é a contenção do dano e não a solução, porque, quando ela acontece, o dano ao assistido já ocorreu”, observa Roberta.

Neste contexto, a Defensoria desenvolveu, em parceria com o Estado, o projeto SER Saúde – Soluções Extrajudiciais Resolutivas. De acordo com Roberta, a iniciativa amplia as práticas pré-processuais capazes de facilitar o fornecimento de medicamentos pela via administrativa, consequentemente, reduzindo as demandas judiciais relacionadas à área. 

O Ser Saúde preconiza que, antes do ajuizamento das ações, a Defensoria contate a Secretaria de Saúde (estadual ou municipal), na tentativa de resolver de forma administrativa a situação. O órgão de saúde repassa a lista de medicamentos que são fornecidos e que possam substituir os solicitados. Caso o médico do paciente autorize a troca, não será ajuizada a ação. “Se o médico do assistido não autorizar, deverá justificar de forma técnica e pormenorizada as razões, para posterior análise pela Defensoria Pública”, complementa Roberta.

Em Santa Maria, origem do projeto, o número de ações por medicamentos caiu 50% no primeiro ano em que a iniciativa foi implementada. Em âmbito estadual, houve redução de 29,23%, comparando-se o primeiro semestre de 2019 e o mesmo período de 2021, período de análise fornecido pela Defensoria Pública. Roberta aponta uma diminuição de 1.988 ações judiciais no período.

A defensora acrescenta que os números gerais de ajuizamento em saúde pela DPE/RS no decorrer da pandemia tiveram um declínio. No entanto, após este período, houve uma normalização e, desde então, os números se mantêm estáveis. “A estabilidade pode ser considerada como um bom indicativo, uma vez que a tendência geral é o aumento dos ajuizamentos de ações na área da saúde”, pondera.

Maioria dos medicamentos pedidos via judicial não é fornecida pelo SUS

Quatro anos atrás, levantamento da Defensoria Pública apontava que 70% das ações judiciais demandadas pelos pacientes tinham como objeto medicamentos não padronizados pelo SUS. Roberta atesta que esta realidade se mantém atualmente. “A maior parte dos pedidos de medicamentos continua relacionada ao que não está padronizado no SUS. As ações judiciais de medicamentos padronizados no SUS se devem prioritariamente a questões de desabastecimentos sazonais.”

Roberta frisa que a orientação é que o paciente sempre busque junto ao médico a possibilidade de utilização de remédios disponíveis pelo SUS. No entanto, a posição do órgão é que se garanta tratamento digno e indicado pelo profissional, independentemente da padronização ou não no SUS. “Se o Estado não tem recursos para oferecer ou adquirir um medicamento de alto custo, tal escusa não pode ser imputada ao paciente individualmente. Cabe à Defensoria Pública solicitar o medicamento ou tratamento indicado pelo médico que acompanha o paciente, independentemente de seu custo. Porém, a instituição tem como diretriz a verificação do esgotamento das possibilidades ofertadas pelo SUS”, reitera Roberta.

A defensora pondera que ainda existe a possibilidade de o Poder Público verificar a necessidade de oferta de remédios solicitados via judicial pelo SUS, negociando com os fabricantes preços acessíveis, uma vez que os valores de fornecimento por meio da judicialização são mais elevados. “Entende-se que essas ações judiciais podem demonstrar falhas nas políticas públicas e assim auxiliar na sua melhoria, como já ocorreu com a incorporação de medicamentos, tratamentos e insumos ao SUS”, afirma.

“Na maioria das vezes, a política pública está deficiente não apenas no fornecimento do medicamento, e sim na disponibilização de todos os cuidados que o paciente necessita, como consultas, tratamentos alternativos, terapias, fisioterapias e do próprio cuidado em domicílio para complemento do tratamento”, reforça a defensora pública.

Prefeituras aumentam investimentos e buscam articulação regional

Os municípios gaúchos também têm buscado alternativas para solucionar os problemas de judicialização que atingem a área da saúde. Uma das medidas adotadas pelos gestores municipais é a implementação de comitês locais e regionais da área.

Assessor técnico da Saúde na Federação das Associações dos Municípios do Estado (Famurs), Paulo Azeredo pontua que a criação dos comitês vem ao encontro das demandas pactuadas entre prefeituras, governos estadual e federal, contribuindo para que o Poder Judiciário entenda como é organizado o SUS.

Pioneira em comitês do gênero, a Associação de Municípios do Centro do Estado (Amcentro) implementou a iniciativa há seis anos. Foi lá que a Defensoria Pública firmou termo de cooperação piloto no Estado, mencionado por Roberta. Apenas em Santa Maria, ações na busca por medicamentos chegaram a ser zeradas no município na época.

A expectativa era que até um terço das demandas judiciais nos municípios caíssem a partir da criação dos comitês, mas Azeredo admite que nem todas as regiões contam com este tipo de articulação.

Além da mobilização entre os prefeitos, o especialista defende maior investimento pelos demais entes federativos. “De 2018 a 2023, os municípios gaúchos saltaram de R$ 4,9 bilhões para R$ 8,8 bilhões investimentos próprios em saúde. Nenhuma cidade do Rio Grande do Sul investe menos do que o mínimo constitucional na área. Mas filas de espera que continuam”, observa. “É preciso complementação por parte do Estado e reajustes de programas criados pelo governo federal.”

Para Azeredo, neste cenário de “cobertor curto” na saúde, as prefeituras acabam pagando contas que não são suas. “Os municípios assumem responsabilidades que não competem a eles constitucionalmente. Pagam até leitos de UTI”, exemplifica. E mesmo com aumento de investimentos, ações judiciais seguem impactando nos cofres públicos municipais. “O que nos preocupa mais hoje na judicialização é a questão da assistência farmacêutica e da rede hospitalar, que não têm atendido a demanda, e isso tem sobrecarregado os orçamentos municipais.”


Família de Enzo promoveu campanha e acionou Justiça para garantir zolgensma, que chegou a ser chamado de remédio mais caro do mundo Foto: Arquivo Pessoal

Famílias tiveram que lutar para conseguir remédio mais caro do mundo

Se de um lado existe a racionalidade dos orçamentos dos gestores de saúde, no outro há algo inerente a qualquer ser humano: a luta pela vida. É isso que prioritariamente querem pessoas que acionam a Justiça na busca por medicamentos, tratamentos e atendimento.

Mas alguns casos se tornam emblemáticos pelo valor que precisa ser dispensado. Nos últimos anos, viralizaram campanhas de famílias para arrecadar dinheiro suficiente para comprar aquele que foi chamado de o remédio mais caro do mundo: o zolgensma. Na cotação do Brasil, o medicamento para Atrofia Muscular Espinhal (AME) chegou a custar R$ 12 milhões.

A AME é uma das oito mil doenças raras registradas no mundo - para ser considerada rara, a enfermidade precisa atingir 65 a cada 100 mil pessoas. Degenerativa e hereditária, ela interfere na capacidade do corpo de produzir uma proteína essencial para a sobrevivência dos neurônios motores, que controlam atividades como andar, falar, respirar e engolir.

Apesar de rara, a doença começou a chamar atenção da sociedade gaúcha a partir de 2020, após o surgimento de campanhas por doações para o tratamento de crianças com o zolgensma. Entre elas, estava a do pequeno Enzo Gabriel Nunes Jung, de Novo Hamburgo. A mãe, Natália Nunes Teixeira, conta que a família começou a desconfiar que o filho tivesse algum problema aos 4 meses, porque ele tinha dificuldade de sustentar a cabeça e o tronco. Após peregrinar por médicos, descobriu a causa meses depois: AME tipo 1.

“Ficamos sabendo do zolgensma pelas campanhas de uma família aqui do Rio Grande do Sul e de outra de Santa Catarina. Na época, o SUS não oferecia e custava R$ 12 milhões. Hoje em dia, existem critérios, mas o SUS fornece”, contextualiza Natália. Ela conta que através da mobilização em redes sociais, rifas, pedágios, brechós e de voluntários, a família conseguiu arrecadar quase R$ 2 milhões. Para conseguir o restante do valor, foi preciso acionar a Justiça. “Juntamos laudo médico, vídeo, foto, tudo o que pudemos acrescentar para ter uma decisão favorável. Foram longos meses de espera, de angústia, porque demorou para sair a decisão da complementação”, recorda.

Passados três anos desde que teve acesso ao medicamento, Enzo tem evoluído, de acordo com a mãe. “Ele usa o respirador com a máquina só para dormir. Antes do medicamento, ele não conseguia viver sem, só para tomar banho. Agora, ele movimenta braço, perna, cabeça, está começando a falar”, enumera a mãe.

O tratamento contínuo com especialistas como neurologista, pneumologista e geneticista é oferecido pelo SUS. Já o suporte de home care, com atendimentos de técnico de enfermagem, fonoaudiólogo e fisioterapia em domicílio, Natália também precisou acionar a Justiça para conseguir.


Passados três anos de ter conseguido medicamento na Justiça, Enzo evolui no tratamento e já dispensa uso do respirador na maior parte do dia Foto: Arquivo Pessoal

Demora no diagnóstico e novos tratamentos potencializam judicialização

É comum que famílias como a de Enzo peregrinem entre especialistas até saber o que realmente o filho tem. Mas desde 2023 uma iniciativa em Porto Alegre auxilia na busca por diagnóstico de doenças raras e tem até evitado ações judiciais neste sentido. A Casa dos Raros objetiva o atendimento de pacientes, o treinamento de profissionais de saúde e a promoção de pesquisas sobre terapias avançadas para este tipo de doença.

O Ministério da Saúde aponta que cerca de 13 milhões de pessoas têm alguma doença rara no Brasil. Na maioria das vezes, os sintomas começam na infância, mas os pacientes demoram a saber o que realmente enfrentam. O tempo médio entre o início dos sintomas e o diagnóstico supera quatro anos. “No caso da AME, por exemplo, o paciente vai para um geneticista, demora um ou dois anos para conseguir consulta, depois vai num neurologista, só tem consulta para daqui seis meses, daí precisa de ressonância, leva mais um ano para conseguir, e por aí vai. Tem estudos que mostram que pode levar até cinco anos, do início até o final do diagnóstico”, acrescenta o médico geneticista Roberto Giuglani.

Idealizador da Casa dos Raros, Giuglani reforça que um dos objetivos da Organização Não Governamental (ONG) é acelerar o diagnóstico. Ele admite que a judicialização dentro da área de doenças raras é algo comum, em função do surgimento frequente de novos tratamentos. “Tem muita novidade. É natural que novos tratamentos surjam e não estejam todos incorporados no sistema de saúde. Então, tem este hiato entre o surgimento da medicação e sua incorporação. Neste período, a família pode estar se valendo de processos judiciais, incluindo para o diagnóstico”, detalha o geneticista.

Os atendimentos na Casa dos Raros são gratuitos, basta a pessoa com suspeita de doença rara demonstrar interesse no site da entidade – www.cdr.org.br. O caso será analisado e se houver indícios de que a enfermidade é rara, teleconsultas são iniciadas até chegar à consulta presencial. A ONG, que conta com especialistas como neurologista, geneticista e fisioterapeuta, por exemplo, também mantém convênio com a Secretaria Estadual da Saúde, que direciona pacientes por meio da regulação do Estado.

“Apesar de o Brasil ter muitos serviços de referência em doenças raras, talvez o melhor deles esteja em Porto Alegre, o Hospital de Clínicas, ainda assim muitas famílias têm dificuldades. O sistema de saúde tem todo um processo de referência que dificulta um pouco a rapidez da chegada dos pacientes até nossos serviços. Mas em alguns casos, como o da AME, o tempo é fundamental. Nossa ideia é acelerar este processo”, pondera Giuglani.

O geneticista aponta que em pouco mais de um ano de funcionamento, mais de 2,5 mil pessoas procuraram atendimento. Todas tiveram o caso avaliado e em torno de 300 foram chamadas. “Além do diagnóstico, fazemos o plano de manejo, em que recomendamos o tratamento, vemos a transferência do paciente para a rede de saúde. Se preciso, treinamos a equipe que vai aplicar o tratamento, além de acompanhar o paciente a longo prazo”, detalha o médico.

O amparo da Casa dos Raros é mais um caminho para enfrentar o problema da judicialização na saúde e assistir adequadamente os pacientes. Afinal, a luta de famílias como a de Enzo é resumida por Renato Trevellin, que tem um filho com a doença e milita na área há mais de uma década. “As famílias se obrigam a buscar na Justiça o tratamento, pois ninguém vai deixar o seu filho morrer e ficar de braços cruzados.”

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