COM 101 ANOS
Conheça Vó Silvina, a voz centenária de quilombo do Vale do Sinos
Veterana da localidade de Macaco Branco e Bom Jardim, de Portão, ela ainda faz questão de trabalhar na roça com a enxada nas mãos
Última atualização: 20/11/2023 12:09
Nascida no dia 8 de maio de 1922, Silvina Rodrigues Flores é como um museu vivo do Quilombo Macaco Branco e Bom Jardim, localizado na cidade de Portão. Aos 101 anos, Vó Silvina, como é conhecida pelos moradores do local, mantém uma vitalidade invejável e que por vezes até assusta os filhos, netos e bisnetos.
Alheia aos protestos, ela segue indo para a roça com a enxada em mãos para capinar e ainda se ocupa de tarefas domésticas. Foi em meio ao trabalho na roça que Vó Silvina nasceu, cresceu e constituiu família neste mais de um século.
Hoje, ela é um referencial para as cerca de 145 famílias que vivem no Quilombo, mas também para a cidade. "Eu virei a vó do município de Portão", conta ela para logo em seguida soltar uma risada. Esta talvez seja uma das características mais marcantes de Vó Silvina, ela ri muito ao finalizar frases, histórias e causos.
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Não há espaço para rancores e mágoas na fala dessa mulher centenária, que carrega nos cabelos brancos, no andar mais lento e no sorriso largo a sabedoria de quem viveu tantas mudanças no mundo.
Silvina nasceu no próprio Quilombo, sendo da segunda geração de quilombolas do local. Seu avô, Noé Rodrigues, é um dos fundadores do local, que tem descendentes também de João Antônio de Oliveira. "O meu avô por parte de pai veio da África, vendido, aos 12 anos", relembra.
Criada em um período no qual as mulheres tinham poucos direitos, Silvina passou a vida no Quilombo. "Na minha época os homens que saíam, as mulheres ficavam em casa." O trabalho começou cedo, desde os cinco anos, ela já acompanhava os pais na roça e assumia as responsabilidades de tarefas domésticas.
Histórias em meio a conflitos e mudanças culturais
Entre as tantas histórias que tem para contar, as que parecem favoritas de Vó Silvina são as que envolvem o pai, João Antônio Rodrigues. Em um tempo de poucas oportunidades de educação, ele conseguiu a oportunidade de aprender a ler e escrever em meio à guerra. "Ele foi pro quartel e lá que ele aprendeu a ler, porque antigamente a raça negra era analfabeta", relembra.
Na memória de Vó Silvina, seu pai foi convocado para atuar em uma guerra. No exército, João Antônio serviu como cozinheiro, ficando longe do campo de batalha.
Pode ser difícil precisar se foi realmente o pai ou o avô de Silvina, e exatamente qual conflito foi. Entre o final do século 19 e início do século 20 o Rio Grande do Sul vivia envolto em disputas, fossem locais ou nacionais. Guerrear era algo natural para os gaúchos daqueles tempos.
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Vó Silvina nasceu em um novo século, no mesmo ano em que o Brasil teria sua semana de Arte Moderna, em meio a um País que se preparava para celebrar o primeiro centenário da independência e que havia deixado para trás os tempos de Império e finalmente se equiparado aos vizinhos e proclamado a República.
Contudo, os novos ares de modernização pouco ajudavam naquele momento para que a população negra tivesse direitos fundamentais respeitados. Embora não fosse oficialmente vetada a presença de crianças e adolescentes negras e negros nos bancos escolares, havia um impeditivo dado pela silenciosa lei do preconceito.
Para uma criança do Quilombo Macaco Branco, procurar escolas para aprender era sinônimo de sofrimento. "Não podia porque era maltratado, não podia nem brincar juntos", conta Vó Silvina sobre a relação com os brancos.
Embora evite falar sobre conflitos, Vó Silvina deixa claro que as tensões raciais daquele período influenciavam no dia a dia. "Comida era separado, o patrão comia primeiro, o empregado era considerado como um cachorro, comia o que sobrava. Patrão comia a carne e dava o osso pro empregado."
A relação com quem vivia fora do quilombo e carregava menos melanina na pele era bem difícil. "Os meus parentes do Macaco Branco eram muito mal vistos. Antigamente a raça negra era considerada os cachorros dos alemão", relembra, trazendo a máxima. "Naquele tempo era branco com branco, preto com preto, cada um no seu canto."
Uma birra que a própria Vó Silvina demonstra estranheza, já que como ela mesma lembra, a presença da sua família é antiga. "Quando Novo Hamburgo fez 80 anos eu ainda brinquei que Novo Hamburgo é mais nova que eu."
Ao revisitar o passado, Vó Silvina lança um olhar carinhoso para o presente, citando a própria família. "Agora que tá uma salada de frutas, tem católico, protestante, evangélico, tem negro, caboclo, tem alemão, e se dão tudo tão bem."
Aprendizado na guerra
Quando Vó Silvina veio ao mundo, Portão era uma vila que naquele período pertencia ao município de São Sebastião do Caí. Para a população do Quilombo, essa distância do centro administrativo tornava a vida ainda mais difícil. "Eles cuidavam só do Caí", conta Vó Silvina. Eram poucos os serviços disponíveis, e nem mesmo os padres iam até a região afastada.
Antes de falar qualquer coisa que considere ofensiva, Vó Silvina se benze fazendo o sinal da cruz. O símbolo criado pelo catolicismo marca a fé dessa mulher de 101 anos, que também viu poucos padres durante sua infância, já que os mesmos quase não iam até o Quilombo. "Eu fui batizada em Hamburgo Velho porque não tinha padre aqui, naquele tempo nem tinha Novo Hamburgo."
Memórias e histórias fazem de Vó Silvina um arquivo vivo, e a conselheira de boa parte dos que ainda vivem no Quilombo Macaco Branco. Vó Silvina casou aos 33 anos com um homem escolhido pelo pai, como mandava o costume da época. Com ele teve três filhos e ainda adotou mais um menino deixado na casa dela quando tinha oito meses.
Aos 101 anos, ela mantém a vitalidade do olhar e vive na casa construída pelo esposo, falecido há 13 anos. Na mesma casa mora uma de suas netas, e logo à frente está a casa de uma das filhas. E assim, Vó Silvina vive seus dias rodeada de netos, bisnetos e dos filhos.
Segundo dados do Censo 2022, Portão é a segunda cidade da região de cobertura do Grupo Sinos com a maior população quilombola, ficando atrás apenas de Osório. Gravataí, Taquara, Novo Hamburgo, Canoas, São Sebastião do Caí e Parobé também têm registro de população quilombola.