VIDA NA CIDADE
CATÁSTROFE NO RS: Porto Alegre vive momento de reconstrução em meio ao caos
Cenário nas ruas da capital é de uma cidade dividida: de um lado ruas que não foram alagadas, do outro, vias completamente submersas
Última atualização: 17/05/2024 09:32
Terça-feira, dia 14 de maio de 2024, e o cenário nas ruas de Porto Alegre é de uma cidade dividida. Nas regiões que sequer alagaram, a tentativa é de seguir a vida com normalidade, embora o principal assunto em todas as rodas de conversa seja a cheia histórica, nunca antes vista.
Há falta de suprimentos, como água, que se tornou um dos artigos em disputa nestes tempos. Mesmo assim, o fluxo de veículos e de pessoas não dá a dimensão do que acontece há mais de duas semanas em outras áreas.
Pois há também lugares onde a água baixou, e as pessoas começam a tentar reconstruir suas vidas e se preparar para o retorno de uma normalidade. Na esquina das ruas José do Patrocínio com Joaquim Nabuco, um muro de água, tal qual o Muro de Berlim, divide de forma clara os alagados e os que já vivem nesta nova realidade.
É neste lugar, localizado no bairro Cidade Baixa, que Carlos Valério, 65 anos, ajuda na limpeza e reconstrução do bar onde trabalha há três anos e meio.
O local onde Valério trabalha está seco, e eles aproveitam o dia de sol para limpar mesas e cadeiras embarcadas. "Foi dramático.
Começou na sexta-feira (3) e a água veio normal, ninguém se preocupou porque ela estava lá embaixo, é algo que nunca aconteceu por aqui", relata o morador do bairro Partenon, na zona Leste da capital, um dos locais que não foi afetado pelas enchentes.
Contudo, a situação de retomada da normalidade se depara, logo à frente, com a realidade de transbordo do Guaíba.
A menos de meio metro de onde Valério trabalha limpando mesas e cadeiras, o nível da água é alto e ainda toma as casas. "Para todos nós, é uma lição. O poder público tem responsabilidade por isso tudo, porque isso era uma tragédia anunciada, já era para ter tomado iniciativa há anos", alerta Valério.
No fundo, ele parece saber que o trabalho realizado na tarde de sol ainda é incipiente e depende do comportamento das águas: "A luta continua. Tem o bar aqui… temos de aguardar o nível da água baixar. O nível vai e volta."
Na fila
Poucos metros distante de onde Valério trabalha, uma longa fila se forma nas esquinas das avenidas João Pessoa e Venâncio Aires. Nela, estão pessoas diretamente afetadas pelas enchentes, que tiveram suas casas submersas.
É o caso do taxista Guilherme da Silva Vitali, 35 anos, morador do bairro São Geraldo, no 4° Distrito de Porto Alegre. Com uma jaqueta do Internacional, ele aguarda, como os demais, a entrega de kits de cesta básica.
"Nunca passamos por uma situação dessas. Começou aos poucos, com a água subindo gradualmente. No início, ficamos surpresos, não esperávamos. Mesmo com todos avisos, acho que por um descaso de anos das instituições estatais, nos criam esse negacionismo", relata Vitali, que vive a situação inédita de buscar doações.
Ele foi o último da família a deixar a casa, com água já na altura do joelho, e dentro da residência estava à altura do peito. "Eu vi a minha casa enchendo de água aos poucos", sintetiza.
Força em meio à tragédia
Quem ajudava na limpeza de outra empresa localizada na Rua Osvaldo Aranha era o gerente Filipe Flores de Oliveira, 34 anos.
Desde domingo, ele utiliza um trator para rebocar um reservatório de água e auxiliar voluntariamente os moradores. Filipe é filho de Celomar Alves de Oliveira, 68 anos, encontrado morto na sexta-feira ao cair de cavalo, enquanto tentava resgatar o gado no bairro Olaria. "Meu pai morreu por causa de uma besteira", diz.
Questionado de onde tira forças para ajudar, Filipe não hesitou em responder. "Vou ficar aqui parado, chorando? Não dá para parar", completa.
A família era proprietária de 130 cabeças de gado, sendo que somente 15 se salvaram.
Hora da mudança
Valério olha para o resultado das águas tomando a cidade e redobra o alerta para o cuidado com o avanço da sociedade sobre o Guaíba. “A natureza infelizmente se rebelou, porque isso aqui era água. Tudo isso aqui era rio, daí foram aterrando, e tem hora que a natureza cobra”, lembra, ao apontar para as ruas do bairro Cidade Baixa.
Vitali, o taxista que conseguiu salvar o carro e se prepara para voltar ao trabalho, também aponta para a necessidade de maior cuidado com medidas que possam evitar tragédias: “A gente nunca espera uma coisa dessas, com o pouco que a gente tem de investimento nas estruturas da cidade e mesmo do País.”
Assim, mesmo ainda sem saber quando poderá voltar para casa ou trabalhar, a população segue em frente. Cada dia é uma nova história, à espera de ver o Guaíba baixar e de poder voltar à vida normal. Mesmo que o normal de antes talvez não exista mais.