Sem ter para onde voltar

CATÁSTROFE NO RS: Maior enchente da história deixa cicatrizes profundas em quem perdeu mais que a casa para as águas

Cheias levaram pertences, casas e até mesmo vidas por toda a região

Publicado em: 29/05/2024 14:20
Última atualização: 29/05/2024 14:20

No dia 25 de abril, Diovana Bauer, 22 anos, e seu marido Lucas Eduardo da Silveira, 24, mudaram-se para Três Coroas, no Vale do Paranhana. O objetivo era recomeçar a vida em busca de um futuro melhor. Exatamente uma semana depois, suas vidas realmente mudaram, mas de uma forma trágica com cicatrizes que ficarão para sempre.


Degraus da casa de Diovana e Lucas foi tudo o que sobrou Foto: Dário Gonçalves/GES-Especial

O casal é natural de Três Coroas, mas viveu os últimos dois anos em Novo Hamburgo. “O proprietário da casa onde morávamos subiu muito o aluguel, então decidimos voltar”, conta Lucas. A casa para onde foram ficava há poucos metros do Rio Paranhana. No mesmo pátio, havia também a casa de Onore Scheffer Bauer, de 66 anos, que ficava no meio, e a casa do pai de Diovana, João Manoel da Silva, 53, na frente.


Hoje, nenhuma das três casas existe, assim como tantas outras que ficavam na Rua da Indústria, no Centro da cidade. A maior enchente da história atingiu o local na madrugada do dia 2 de maio e levou tudo. Onore era avô de Diovana e também foi levado pelas águas do Paranhana. Seu corpo foi encontrado dois dias depois às margens do rio, cerca de dois quilômetros à frente.

Na propriedade onde a família se reunia, com três casas e um quiosque para churrasco, restam lama e escombros de outras casas. Não sobraram nem mesmo objetos pessoais, pois as casas que pertenciam à família de Diovana foram para longe dali.

Poste onde as duas casas bateram ficou inclinadoDário Gonçalves/GES-Especial
Parte da casa de Diovana e Lucas parou sobre um banheiro de uma outra casaDário Gonçalves/GES-Especial
Parte da casa de Diovana e Lucas parou sobre um banheiro de uma outra casaDário Gonçalves/GES-Especial
Diovana encontra o piso de sua casa na propriedade do vizinhoDário Gonçalves/GES-Especial
Cenário de destruição às margens do Rio ParanhanaDário Gonçalves/GES-Especial
Avó de Lucas visita o local destruído pela primeira vezDário Gonçalves/GES-Especial
Lucas e DiovanaDário Gonçalves/GES-Especial
Lucas e Diovana perderam tudoDário Gonçalves/GES-Especial
Só restam escombros onde antes ficava a casa do avô de DiovanaDário Gonçalves/GES-Especial

O que antecedeu a tragédia

Diovana, Lucas, e os pais dela se mudaram para Novo Hamburgo há cerca de dois anos. O pai da garota, ainda se dividia entre Três Coroas e a nova casa, enquanto Onore morava sozinho com dois cachorros e um gato na casa do meio. Como a irmã de Diovana também havia se mudado, a casa mais próxima ao rio estava sozinha e o casal voltou para a cidade Natal em busca de oportunidades e morar sem pagar aluguel.

A mudança ocorreu no dia 25 de abril, quando a chuva começou na região. A permanência na nova casa durou pouco, pois quatro dias depois, Diovana e Lucas pegaram o carro e se abrigaram na casa da avó do rapaz, no bairro Sander. “Quando começa a encher a rua pelos bueiros, sabemos que o rio vai subir. Só que a gente nunca viveu uma enchente naquela casa. Quando acontecia, vínhamos para a casa do meu pai”, relembra Diovana.

Onore, que tinha a casa mais alta, decidiu ficar. De terça para a quarta-feira (1º), a água invadiu as casas, mas depois baixou. João, o pai de Diovana, foi para Três Coroas ver como as coisas estavam e tentou levar o sogro, Onore, para um local seguro. “Meu avô era cabeça dura, ele não quis sair. A chuva acalmou na quarta-feira em Três Coroas, mas na serra ainda tinha muita água que estava descendo”, conta a neta.

Uma ligação na madrugada

Antes de dormir, na noite do dia 1º para o dia 2, quinta-feira, Diovana conversava com o marido, projetando voltar para casa e limpar suas coisas durante o dia. Contudo, por volta das 4h da madrugada, ela foi acordada por uma ligação de seu vizinho, Gabriel Guilherme Kunrath, 22. O rapaz mora ao lado de onde existia a casa de Diovana e estava na sacada do segundo andar de sua residência. Naquele momento, ele fazia um vídeo da casa da frente, a pedido da proprietária, para mostrar a situação.

Enquanto Gabriel filmava, a casa que pertencia aos pais de Diovana é levada pelas águas do Paranhana e se parte ao meio ao atingir um poste de concreto. Atrás dela, vinha a casa de Onore, que bateu no mesmo poste e seguiu adiante junto ao curso do rio. O idoso não foi mais visto com vida.

Destroços de casas de vizinhos ficaram sobre a piscina do avô de DiovanaDário Gonçalves/GES-Especial
Diovana Bauer e Lucas da SilveiraDário Gonçalves/GES-Especial
Recomeço de Diovana e Lucas será do zeroDário Gonçalves/GES-Especial
Casas inteiras foram destruídasDário Gonçalves/GES-Especial
Casas inteiras foram destruídasDário Gonçalves/GES-Especial
Casas inteiras foram destruídasDário Gonçalves/GES-Especial
Diovana encontra foto em meio aos escombros, mas não pertence à sua famíliaDário Gonçalves/GES-Especial
Um pátio sem casas, tomado por escombrosDário Gonçalves/GES-Especial

Gabriel ligou para Diovana e informou o que havia acontecido. A garota imediatamente tentou contato com os bombeiros, mas não conseguiu. Poucos minutos depois, acabou o sinal de telefone e de internet. Quando o dia amanheceu, Diovana e Lucas tentaram voltar para casa, mas não era possível chegar. A água estava alta e a correnteza impedia os barcos de navegarem.

Mais tarde naquele dia, o vídeo das casas sendo levadas já havia se espalhado. “A primeira vez que vi, eu recebi de uma pessoa que mora em Santa Catarina. Ele nos falou, ‘olha como está na tua cidade’, aí a gente abriu o vídeo e viu que era a casa do meu pai e do meu avô. Entramos em desespero”, relata Diovana emocionada.

Quando finalmente conseguiram voltar para casa, no sábado (4), o choque tomou conta. A casa do avô de Diovana estava no fim da rua, há cerca de 200 metros. Lá, estava um dos cachorros de Onore, vivo. O outro havia se abrigado na casa do vizinho e o gato foi encontrado no telhado do quiosque. “Como o cachorro estava lá, tínhamos certeza que ele também estava na casa, porque os dois estavam sempre juntos”, explica a garota. No mesmo dia, os bombeiros localizaram o corpo quase no limite com a cidade de Igrejinha.

“Eu tenho uma cena muito marcante dele, porque a gente tinha se mudado pra cá há pouco tempo e iríamos fazer companhia. Ele estava na escada apontando pra nós quando chegamos do mercado, e falou ‘o que vocês precisarem, eu tô aqui, podem contar comigo’. Quando vi o corpo, foi a imagem que me veio à cabeça”, são as últimas lembranças de Lucas. O rapaz reforça que tentaram fazer com que Onore deixasse a residência, mas ele próprio não queria sair. “Não tem como culpar, eu só saí porque minha avó insistiu muito e disse que não iria dormir se não fôssemos”, complementa Lucas.

Diovana e Lucas, assim como milhares de pessoas, passam pela maior provação de suas vidas e mais do que nunca precisarão de um recomeço. Os dois seguem abrigados na casa da avó de Lucas, e é lá, nos fundos do pátio, que pretendem construir um novo lar para viverem, bem longe do rio. Para isso, uma campanha online foi criada e pode ser acessada em vakinha.com.br/4725033 por quem puder ajudar.

Deslizamentos também levaram casas


Danubia e Lindomar em frente ao que era o seu quarto Foto: Dário Gonçalves/GES-Especial

Danubia Indiara Caraffini Paci, 32 anos e Lindomar Damião, de 38, são moradores da rua Nicolau Braun, na Vila Dreher, também em Três Coroas. Ou melhor, eram. Isso porque um deslizamento no dia 11 de maio levou parte da casa onde viviam com os dois filhos, de 11 e 5 anos. A parte que restou está pendurada e é questão de tempo para que também desabe ou seja derrubada. O fato é que morar ali não é mais possível.

Lindomar conta que na madrugada de sexta para sábado (11), ele chegou em casa por volta das 3 horas após o trabalho. Neste momento, encontrou uma rachadura vinda da área onde ficava sua piscina, passando por dentro de sua casa, atravessando a rua e chegando à casa do vizinho da frente. Preocupado, ligou para a Defesa Civil, que teria dito que “se fosse só uma rachadura, não havia perigo. Na segunda-feira (13), após a chuva parar, seria feita uma avaliação no local”.

Restante da casa está prestes a desabarDário Gonçalves/GES-Especial
Vista de frente, não se tem uma noção do real estrago que o deslizamento causouDário Gonçalves/GES-Especial
Danubia tinha em sua casa, seu pequeno paraísoDário Gonçalves/GES-Especial
Vista de frente, não se tem uma noção do real estrago que o deslizamento causouDário Gonçalves/GES-Especial
Deslizamento atingiu seis casasDário Gonçalves/GES-Especial

Não houve tempo para isso, na tarde daquele mesmo dia, parte da casa onde ficava a garagem e o quarto do casal, desabou. O deslizamento levou todo o pátio, parte da rua, e a casa do vizinho da frente, onde a rachadura se apresentava durante a noite. Outras quatro casas também foram destruídas. Por sorte, ninguém ficou ferido porque Lindomar passou o dia avisando os moradores e todos haviam deixado o local.


Atualmente, a família está vivendo em um quiosque de festas no pátio da empresa de Lindomar. Eles já buscaram um local para locar e tentar o aluguel social da prefeitura, contudo, faltam imóveis. “Já procuramos até em Campo Bom e não achamos. O que está disponível está com valores muito elevados”, conta Lindomar. Além deles, o drama também atinge muitos outros moradores que têm medo de um novo deslizamento. Entre eles, a irmã de Lindomar, que mora duas casas acima, e também a mãe dele, três casas acima, onde uma rachadura também cruza o pátio.

 

Danubia tinha em sua casa, seu pequeno paraísoDário Gonçalves/GES-Especial
Vista de frente, não se tem uma noção do real estrago que o deslizamento causouDário Gonçalves/GES-Especial
Restante da casa está prestes a desabarDário Gonçalves/GES-Especial
Deslizamento atingiu seis casasDário Gonçalves/GES-Especial

Danubia lamenta a perda de uma vida de trabalho e a conquista de seu pequeno paraíso, com piscina, pátio para os cachorros e muitas árvores frutíferas. “Meu sonho inteiro se foi, minha casinha, meu paraíso. Tínhamos uma vista incrível, e agora tudo isso acabou. Tivemos sorte disto acontecer enquanto não estávamos dormindo. Daqui pra frente, o que me resta é sonhar outra vez”. Na tentativa de reconstruir, o casal também fez um financiamento coletivo, que pode ser acessado neste link: vakinha.com.br/4788988.

Rachadura apareceu na casa da mãe de Lindomar, que fica três casas acima da suaDário Gonçalves/GES-Especial
Rachadura apareceu na casa da mãe de Lindomar, que fica três casas acima da suaDário Gonçalves/GES-Especial

Conforme a Defesa Civil de Três Coroas, 150 residências foram totalmente destruídas e cerca de 650 pessoas não têm mais casa para voltar. Seis casas foram destruídas pelo deslizamento na Vila Dreher. “Foram evacuadas as casas da parte alta da Vila Dreher e da parte de baixo onde estava a linha de deslizamento. A rua não vai mais ser reconstruída e os moradores serão realocados para áreas seguras conforme programa do governo municipal, que está captando recursos do governo federal”, afirma o coordenador da DC, Augusto Dreher, que ressaltou também que todos os que quiserem e precisarem de aluguel social terão este direito. “É só procurar a assistência social para fazer o processo de aluguel”, finaliza.

“Não sei se tenho casa para voltar”

Em Novo Hamburgo, Enio Alves de Oliveira, 68 anos, morador da casa 1010 na rua Leopoldo Wasun, bairro Santo Afonso, está há quase um mês abrigado com sua irmã. A água ainda alaga a região onde está sua casa e, por isso, ele ainda não consegue acessar o local para iniciar qualquer limpeza. Contudo, o cenário que viu ao passar de barco pelo local é desanimador. Ao menos a frente da residência desabou. “Minhas coisas eu perdi tudo, não tenho mais nada. Tudo está dentro d’água há mais de 20 dias. A minha casa caiu e eu não sei se tenho casa para voltar. Então não sei como vai ser, o que eu vou fazer”, lamenta.


Casa de Enio desabou e o acesso ainda é impossibilitado devido aos alagamentos Foto: Divulgação

Mesma situação vive Estrelita Duarte, de 30 anos, da rua Costa Rica. Sem conseguir chegar à residência, a imagem que ela vê de longe é de uma casa que desabou. “Não posso chegar na minha rua, é uma tristeza que não acaba. A dor de não poder entrar em casa, meus filhos perguntando quando vamos para casa, dizendo que já estão cansados de ir de um lado pro outro. E não tem nada certo de quando vou poder ver minha casa, se a água não levou”.

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