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REFLEXÃO

Berço da indignação origina o Dia da Consciência Negra

País reflete papel da população negra escravizada na sua formação

Eduardo Amaral
Publicado em: 20/11/2024 às 08h:37 Última atualização: 20/11/2024 às 08h:38
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Nesta quarta-feira (20), pela primeira vez, o Brasil irá parar para homenagear Zumbi dos Palmares e refletir sobre a questão racial do País. Sancionado no ano passado, o feriado do Dia da Consciência Negra é uma conquista de mais de cinco décadas que começou no Rio Grande do Sul a partir de uma provocação que o então estudante de Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Antônio Carlos Cortês, ouviu do professor João Antonio Pernambé.

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Antônio Carlos Cortês, na esquina democrática, palco de manifestações e símbolo de lutas e resistência na capital gaúcha | abc+



Antônio Carlos Cortês, na esquina democrática, palco de manifestações e símbolo de lutas e resistência na capital gaúcha

Foto: Eduardo Amaral/GES-Especial

“Ele se dirigiu a mim dizendo o seguinte, ‘doutor, o senhor sabia que a Lei Áurea tem só dois artigos. Artigo 1º, estávamos extinta a escravidão no Brasil. Artigo 2º, revoguem todas as disposições de contrário”. Para o jovem com o espírito incendiário, esta faísca foi o bastante para acender um fogo de indignação quanto a história que se conhecia até então.

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Nascido e criado na região central de Porto Alegre, Cortês começou a questionar a história de uma princesa Isabel como heroína redentora da população escravizada. Já integrante da Sociedade Floresta Aurora, uma das mais antigas organizações negras do País, Cortês passou então a buscar outros exemplos como heróis.

“Eu tentava descobrir a data do nascimento de Zumbi, mas não encontrei, mas achei a data da morte: dia 20 de novembro de 1695 no Quilombo de Palmares.” Nascia aí a data, a partir da reflexão, a proposta de dizer “não ao 13 de maio”, que marca a assinatura da Lei Áurea. A lei de 13 de maio colocou um fim oficial, e com atraso, na prática do trabalho escravizado no País.

LEIA TAMBÉM: Documentários resgatam a participação de pessoas negras no desenvolvimento da região

Questão de vida ou morte

Contestar a história oficial em 1971, quando a Ditadura Militar brasileira vivia o auge de seu projeto ufanista era algo muito perigoso. “Eu e o Oliveira Ferreira Silveira fomos detidos. Não com violência, mas intimados a depor na Polícia Federal, na censura, enfim, para que a gente explicasse o que que era esse grupo Palmares”, relembra Cortês.

Palmares foi o nome escolhido pelo grupo formado por Cortês juntamente com Ilmo da Silva, Vilmar Nunes e Oliveira Silveira, que depois foi ampliando a participação. O nome escolhido fazia justamente referência ao Quilombo onde Zumbi se destacou na luta contra a política escravagista do Estado brasileiro.

Em meio a Ditadura, os militares acreditavam que o grupo tinha ligação com o Var-Palmares, o grupo de militantes de esquerda paramilitar que se embrenhou na região do Araguaia acreditando ser possível fazer a luta armada contra o regime. Mesmo sem ter ligação com este grupo, o Palmares de Porto Alegre estava atento aos riscos de se reunir naquele momento, e em razão disso criaram uma estratégia para manter a ideia viva.

“Decidimos que quatro iriam colocar a cara para bater. E outros ficaram ocultos para caso a ditadura nos eliminasse, eles dariam sequência à nossa ideia de dizer não ao 13 de maio, sim ao 20 de novembro de Zumbi dos Palmares”, relembra Cortês deixando claro que o grupo estava disposto a morrer por sua luta em nome de um símbolo da negritude brasileira.

Futebol e democracia

Os artigos da Lei Áurea e a alusão a Zumbi dos Palmares não foram os únicos motivadores da proposta apresentada pelo Palmares. Cortês encontrou também no futebol uma das razões de indignação para recontar a história da perspectiva daqueles que descendem dos escravizados.

“Na Copa do Mundo de 1950, o Brasil perdeu o Uruguai no Maracanã com mais de 100 mil pessoas. Na seleção brasileira tinha o Juvenal, o Bigode e o Barbosa, que era o goleiro. Culparam os três negros pelo fracasso da seleção e a partir dali começaram a dizer que o negro não servia para a seleção porque o negro amarelava na hora da decisão”, relembra Cortês, destacando que oito anos depois o País viria a ser campeão do mundo graças aos jogadores negros, entre eles um jovem de nome Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, e o indígena de pernas tortas Mané Garrincha, ambos reservas no início da campanha de 1958.

Imbuídos com um sentimento de revolta causado por séculos de exclusão e estigmas, o Palmares fez sua primeira reunião. Sem local físico para o encontro, a esquina a Rua dos Andradas (Rua da Praia) e Avenida Borges de Medeiros foi escolhida como sede das primeiras reuniões. “Não era (na época) conhecida como Esquina Democrática, nos reunimos ali, aos sábados de noite”, relembra Cortês sobre o que pode ser considerado, de certa forma, a inauguração do espaço no centro de Porto Alegre como a sede aberta do debate democrático na capital.

O feriado

Memórias das lutas passadas mexem com o advogado e psicanalista Cortês ao lembrar do caminho percorrido para que em 2024, pela primeira vez na história, o País
pare para celebrar a memória de Zumbi dos Palmares neste dia da Consciência Negra. “Vejo com muita emoção e homenagem aos meus colegas que foram fundadores
do grupo Palmares há mais de 50 anos e que já não estão mais neste plano para poder ver o êxito da luta.” 

Mesmo antes de ser um feriado nacional, o 20 de Novembro se tornou uma data de parada em diversos estados e cidades do País. Curiosamente, o local de origem do Grupo Palmares foi um dos que não adotou a data em anos anteriores como feriado. 

Questionado sobre o motivo que levou o grupo a lutar para que a data fosse de paralisação, Cortês explica que esta ideia era justamente abrir um dia no calendário para chamar atenção sobre o tema da negritude no País. “Para ter uma data de discussão da reflexão da posição do negro no Brasil da desigualdade, porque a história oficial brasileira não registra a importância do negro que encharcou o chão desse Brasil, os escravizados, com seu suor e com seu sangue, e não participaram da história oficial brasileira.”

Feevale lança hoje campanha antirracista

Hoje a Universidade Feevale, lança a campanha “#Cadê a Minha Rua?”. Na prática, alunos do curso de Publicidade e Propaganda sugeriram uma campanha publicitária antirracista a qual busca mostrar o legado da população negra em Novo Hamburgo. O projeto começa com a veiculação do perfil e foto, em formato de placa de rua, de cinco pessoas negras nas redes sociais do projeto social Cidade Viva (@feevalecidadeviva).

Quem acessá-las poderá conhecer a história de Maria Emília Mendonça, escritora; Álvaro Pacheco, fundador da escola de samba Cruzeiro do Sul; Nair Leopoldina de
Oliveira, benzedeira; Carlos Alberto de Oliveira, o Carlão, artista plástico; e Ademir Leopoldo da Silva, o Sabonete, ex-presidente da escola de samba Cruzeiro do Sul.

A campanha continua com a participação de alunos da rede municipal de ensino, que indicarão pessoas negras nas proximidades das suas escolas para divulgação também nas redes. “No contexto da imigração alemã é importante lembrar e comemorar também o legado da cultura negra na cidade”, salienta a professora Saraí Schmidt, que orientou a campanha.

Ela acrescenta que a mobilização nas escolas é importante como forma de pensar em campanhas de comunicação antidiscriminatórias e que essa ação integra o convênio Educação Antidiscriminatória firmado entre a Feevale e a Secretaria Municipal de Educação desde 2021. 

Outras programações 

Em Taquara: Hoje, às 16 horas, terá apresentação de roda de capoeira com aproximadamente 20 pessoas do grupo União de Raças. A atividade, no Parque do  Trabalhador (Rua Prof. Nestor Paulo Hartmann, 1, bairro Recreio), integra a programação da 3ª Semana da Consciência Negra, do Instituto Pró-Cidadania.

Em Canoas: a Semana da Arte e da Cultura Negra de Canoas encerra hoje. Das 13 às 18 horas, o Sarau Sankofa apresenta o Poetas do Futuro, em parceria com o Espaço Cultural Indayá. Já às 16 horas, o Coletivo Preta, Preta, Pretinha realiza contação de história afrocentrada. A programação acontece no Garden Containers, no bairro Marechal Rondon. Dentro da programação, ontem a Escola Municipal João Paulo I teve contação de histórias do Boneco Bastião, conduzida pelo mestre griô Júlio Cezar. O Boneco Bastião, criado por  ele em 2010, é inspirado em Sebastião Coelho, escravizado que viveu em Canoas e cuja história é símbolo de resistência e
memória.

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