DOIS MESES DA CATÁSTROFE
Bebê salvo em caixa de isopor e outras histórias de luz em meio à obscuridade das enchentes no RS
Experiências servem de exemplo e esperança para dias melhores meses depois da catástrofe que atingiu o Estado
Última atualização: 03/07/2024 08:28
Ao andar pelas ruas das cidades devastadas pela enchente, a sensação é de sufocamento, pois de um lado da calçada existem entulhos e, do outro, também. Essas pilhas enormes são cheias de memórias, conquistas e sonhos perdidos para as águas turvas da chuva.
Por mais que a água tenha ido, ficam esses corredores de tristeza e um olhar perdido daqueles que voltam para recomeçar, sem saber ao certo como. Porém, no meio deste luto coletivo vivido pelo Rio Grande do Sul, existem pontos de luz e esperança.
Algumas histórias de superação e solidariedade se destacam, iluminando o cenário sombrio de destruição. Entre os sobreviventes está Joaquim Bernardo Vieira de Campos Trevisan, na época um recém-nascido de apenas 15 dias, salvo de maneira inusitada: em uma caixa de isopor.
No início de maio, Jamile Peres Vieira de Campos, de 20 anos, e sua família deixaram sua casa em São Leopoldo para buscar refúgio na casa da sogra, que fica na mesma cidade, temendo a iminente inundação.
A ruas começaram a encher rapidamente e a situação se agravou no dia seguinte. "A gente viu que não ia dar para voltar para casa. Tinha muita água, mais de um metro já. Saímos com pouca roupa e poucas coisas para o Joaquim, que tinha apenas 15 dias", conta a mãe do recém-nascido.
Decisão rápida
Diante da situação, a família precisou tomar uma decisão rápida e improvisada. "Minha sogra tinha uma caixa de isopor bem grande. Pensamos em colocar Joaquim dentro dela para manter ele seguro e seco. Meu namorado sugeriu que eu e minha cunhada usássemos um colchão inflável para flutuar. A água estava muito suja e perigosa para nós", explica Jamile.
A cena era surreal. A sogra Fabiane empurrava a caixa de isopor com o bebê dentro, enquanto equilibrava uma mamadeira para alimentá-lo. "Ele começou a chorar, e minha sogra dava mamadeira para ele enquanto estávamos todos na água. Era desesperador, mas necessário, eu chorei junto, vendo meu filho tão novo passando por isso", relembra Jamile.
Após muita luta, a família conseguiu chegar próximo ao trem da Santo Afonso, foi resgatada pelo tio de Jamile e levada para um local seguro em Novo Hamburgo, onde a água não havia chegado. "A sensação de alívio foi enorme. Lá, Joaquim tinha uma cama, estava seco e seguro. Sabíamos que o pior tinha passado", diz a mãe, emocionada.
Embora a enchente tenha causado uma destruição imensa e perdas materiais significativas, a família de Joaquim encontrou motivos para agradecer. "Perdemos tudo, mas damos graças a Deus que estamos vivos e juntos. Ver meu filho salvo, mesmo depois de passar por isso tudo, é uma bênção", afirma Jamile.
"Estamos determinados para recomeçar"
A história de Joaquim, o bebê que sobreviveu à enchente em uma caixa de isopor, rapidamente se espalhou pela comunidade, tornando-se um símbolo de esperança e resiliência.
A família, que ainda está abrigada na casa de parentes, segue reconstruindo sua vida aos poucos. "Minha mãe ainda está limpando a casa todos os dias. Moramos bem perto do rio, e isso nos deixa em constante alerta. Mas estamos determinados a recomeçar", declara a mãe do bebê.
Apesar do início difícil, a vida do pequeno Joaquim agora é cheia de promessas. "Ele já nasceu lutando. Nem sabe ainda das aventuras que já viveu", brinca Jamile, olhando carinhosamente para o filho.
Atualmente, a família precisa de ajuda com itens essenciais para o recém-nascido, como berço, roupeiro, roupinhas e leite Aptamil. Quem quiser ajudar, pode entrar em contato diretamente com eles pelo telefone: (51) 98947-1922.
Festa para uma debutante no abrigo
Muitas vezes, os momentos mais memoráveis são aqueles não planejados. Mesmo com a tristeza de ter que ficar com sua mãe e seus dois irmãos no abrigo administrado pela ONG Grupo De Coração, em parceria com Grupo Unidos pela Bondade, de São Leopoldo, Kathleen Eduarda Macedo Godinho recebeu uma surpresa ao completar seus 15 anos morando no abrigo.
Kathleen, que atualmente voltou para casa, com sua mãe Bárbara Letícia Macedo e seus irmãos Jorge Henrique, de 8 anos, e Luiz Fabiano, de 16 anos, comemorou seus 15 anos de uma maneira inusitada. A mãe dela, Bárbara, não tinha condições de fazer uma grande celebração, mas a comunidade se mobilizou para garantir que esse momento fosse especial.
"Eu não tinha condições de fazer uma festa para ela, de alugar um salão", explica Bárbara, emocionada. Ela tentou tirar uma foto em estúdio para guardar como lembrança, mas os planos foram interrompidos pela enchente.
No entanto, a equipe do abrigo surpreendeu a todos com uma comemoração singela, mas cheia de amor. "Quando eles chamaram lá na frente, eu fiquei mais feliz do que ela", conta Bárbara.
Ezequiel de Souza, coordenador do abrigo, descreve o esforço da equipe para proporcionar momentos de alegria às famílias desabrigadas. "Nós queríamos que eles tivessem a melhor experiência possível", afirma.
A festa de Kathleen teve bolo, bombons, flores e até um show de música ao vivo, feito pelo próprio coordenador do abrigo.
Ela menciona que o evento teve direito até a cachorro-quente e suco para todos os mais de mil abrigados e o que realmente importou foi a união e o carinho demonstrado. "Foi bom. Foi mais do que eu esperava", diz Kathleen, com um sorriso tímido, mas cheio de gratidão.
Apesar de terem voltado para casa, a situação da família ainda é precária. Bárbara relata que perderam quase tudo. Doações para a família podem ser feitas pelo telefone (51) 99246-5780.
A força que vem do trabalho voluntário
Salete Leonice de Souza foi voluntária por anos e carrega uma história de resiliência e força no olhar. Depois de muitos anos ajudando sua comunidade, ela perdeu tudo que tinha na enchente, na Chácara dos Leões, no bairro Santos Dumont, em São Leopoldo.
Assim, a mulher generosa recebeu de volta o que plantou a vida toda. Ela foi escolhida como a primeira família para receber a mobília nova da casa, por meio de uma vaquinha do abrigo em que ficou, administrado pela ONG Grupo De Coração em parceria com Grupo Unidos pela Bondade, de São Leopoldo.
Há quatro anos, Salete encontrou um propósito que mudou sua vida e a de muitos ao seu redor. Ela decidiu que iria usar seu talento na cozinha para ajudar aqueles que mais precisavam, cozinhando alimentos para doação. "Se eu fico em casa, começo a pensar demais nos meus problemas, e ajudar os outros me faz bem", explica.
Salete iniciou seu trabalho solidário vinculado a uma igreja local, onde ela não apenas cozinhava, mas também buscava maneiras de arrecadar fundos para sustentar suas ações. "Eu vendia roupas para comprar pão e mortadela para os moradores de rua."
Essa mesma mulher solidária carrega uma grande dor no peito. Ela perdeu dois filhos em circunstâncias trágicas. "Um deles, com 19 anos, foi vítima de violência, e o outro, que estava feliz por ter conseguido um emprego, também foi morto com uma bala perdida", relembra com dor.