A mesma lama do Rio dos Sinos, que invadiu centenas de casas, comércios e espaços públicos de São Leopoldo durante as enchentes de maio passado, serve como base para uma exposição artística aberta ao público na semana passada na cidade.
Batizada de Memórias Sedimentadas, a mostra, aberta à visitação no Espaço Sicredi, no bairro Feitoria, traz 22 quadros pintados pelo arquiteto e artista visual Feu Cardoso, 29. As telas, produzidas em pedaços de móveis coletados nos entulhos amontoados nas ruas durante a cheia histórica, retratam personagens diretamente afetados pela catástrofe na cidade. São crianças, jovens, homens e mulheres que tiveram suas casas e suas vidas devastadas pelas águas.
Para a pintura dos rostos, Cardoso utilizou uma mistura feita com lama, cola e água. “Foi a primeira vez que utilizei este material para pintar telas. Foi um desafio. Precisei peneirar para retirar as pedras que ficavam na mistura”, conta. Segundo ele, a ideia inicial era utilizar a lama coletada nos locais atingidos pela enchente, o que não foi possível devido ao mau cheiro contido nela.
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“Acabei coletando a lama na beira do rio”, explica. Cardoso recorda que a ideia de produzir os quadros surgiu logo após os primeiros dias da enchente.
“Encontrei com essas pessoas pessoalmente e as fotografei. Na hora da foto, algumas sorriam, então pedia para que elas expressassem no rosto o sentimento que tiveram quando viram suas casas invadidas pelas águas. O resultado foi diverso. Algumas expressam indignação, outras tristeza, outras resignação”, resume.
A pintura dos quadros, segundo Cardoso, levou três meses para ser concluída. O resultado pode ser visto na exposição, que fica aberta ao público até o próximo dia 8, de segunda a sexta-feira, das 9 às 16 horas, no Espaço Sicredi Feitoria, localizado na Avenida Feitoria 5.070. Depois de 11 a 22 de novembro, os quadros serão expostos no Sicredi do bairro Rio Branco para na sequência a mostra ser montada na cidade de Estância Velha.
A intenção de Cardoso é realizar um leilão beneficente das peças, com o valor arrecadado sendo revertido às vítimas da enchente. “É um sentimento de realização, de recompensa por se fazer alguma coisa boa. Algo como dever cumprido, por ter feito algo e não apenas ter ficado em casa, assistindo a tudo acontecer. A intenção não é romantizar a tragédia, nem virar a página, porque isso não é possível, mas de mostrar a resiliência dessas pessoas, de servir como um ritual de passagem para elas”, destaca o artista.
Reflexão
A publicitária Dóris Hess, 57 anos, é um dos rostos retratados na exposição. Moradora do térreo de um condomínio no bairro São Miguel, ela perdeu tudo o que tinha na residência, onde morou por dois anos. “Não moro mais lá, não voltei mais lá depois da inundação. Hoje moro de favor, na casa de parentes”, conta. Para ela, participar da exposição é gratificante.
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“É fundamental para que a sociedade reflita sobre esta situação para que ela possa ser evitada. Não precisava ter acontecido essa inundação, eu não precisava ter perdido a minha casa, não há nada de oportunidade de crescimento, como eu ouvi de algumas pessoas. A inundação não foi provocada pela natureza, mas pela falta de responsabilidade humana, seja em nível de gestão pública, ou em nível de questões privadas e coletivas”, opina.
Ao artista, Dóris, que foi mestre de cerimônias na abertura da exposição, expressou agradecimento. “Precisam existir mais artistas, mais profissionais e pessoas públicas abordando estas questões de forma madura e responsável de fato e não simplesmente dizendo que tudo vai passar, dando tapinha nas costas. É preciso confrontar a realidade para que possa evitar que ela retome com força maior”, diz.
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