Foi no começo da noite que os sinos da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, em Montenegro, no Vale do Caí, começaram a tocar. Não era para anunciar a missa, mas para comemorar a chega de uma carreta de 30 toneladas de doações vindas de Poço de Caldas, em Minas Gerais.
O padre João Vitor dos Santos fez questão de gravar um vídeo de gratidão. “O nosso povo agradece”, disse. Se a dor que assola a população gaúcha é gigante e a incerteza sobre o futuro causa aflição, o tamanho da solidariedade manifestada de norte a sul do Brasil, e também no exterior, é proporcional, ou talvez até maior, a todo o sofrimento.
Diariamente, caminhões chegam ao Rio Grande do Sul, personalidades se engajam em campanhas e voluntários desembarcam nos pampas prontos para ajudar. Dizem que fica sempre um pouco de perfume nas mãos que são generosas. E, mesmo que neste momento o cheiro das águas sujas dos rios esteja no ar, o coração dos rio-grandenses está tomado pelo perfume do carinho que chega de todo o mundo.
No sábado, uma carreta que vinha do Paraná e trafegava pela RS-240, para acessar a região Metropolitana, tinha um adesivo com os dizeres “Forte é quem, depois de tanto perder, reergue-se e segue lutado”. Recados como esse se repetem nas rodovias e também foram colocados no caminhão de Jaderson e Roberta Walter, 41 e 40 anos, que carrega duas faixas sinalizando doações para o Rio Grande do Sul.
Foi no domingo que o casal deixou a casa em São Paulo, na capital, e partiu para Novo Hamburgo. Ela é arquiteta e ele empresário, natural do Paraná, mas filho de gaúcho. Inclusive, Jaderson é colorado e o boné do time do coração está sempre em uso enquanto doa seu tempo e mão de obras em prol das vítimas da enchente.
Os dois chegaram com o veículo particular carregado de doações e, desde então, não pararam, ajudando na entrega de kits que saem da Fenac. Jaderson também instalou uma caixa d’água no antigo hotel da Fenac, para ajudar no trabalho da equipe veterinária.
Na manhã de terça-feira (14), ele não conseguiu parar para conversar com a reportagem, pois ajudava no carregamento de produtos de higiene para o bairro Santo Afonso. “São dois sentimentos que tomam conta da gente. O primeiro é de tristeza e solidariedade às pessoas. O segundo é de gratidão, pois em todo o lugar que a gente chega as pessoas dizem: ‘Deus te abençoe’”, conta Roberta.
Quem está por perto também estende a mão
De mais perto, a professora aposentada Iria Thereza Saenger, 75, também quis encontrar uma forma de ajudar. “A minha preocupação foi o que fazer para melhorar a situação das pessoas”. Em contato com a professora Berenice Adams, 63 anos, que atua como voluntária no espaço batizado como ilha dos brinquedos, descobriu como poderia ser útil.
Doações de brinquedos e livros são organizados nesta parte do pavilhão, mas muitas bonecas têm chegado sem roupas e bichos de pelúcia descosturados. Como Iria tem a costura como hobby, consertou os bichinhos e garantiu roupas novas para 12 bonecas, sendo que nesta terça levou outras para o atelier.
“Fazer solidariedade ou ser útil é nosso dever. Eu vim aqui no domingo e chorei. Pois penso que tenho tanto e realmente é dolorido ver essa dor que essas pessoas estão passando”, declara. Quem quiser ajudar Iria no conserto, pode doar retalhos de tecidos pelo telefone (51) 99933-2223.
Doações internacionais aguardam envio
Do outro lado do Atlântico, a jornalista hamburguense Patrícia Lazzaretti, 49, que há seis anos vive em Lisboa, Portugal, integrou a campanha SOS RS em Portugal. “Eu comecei a me desesperar ao ver as notícias e ver os nossos familiares e amigos desabrigados, pois perderam tudo”, relata. A gente começou a se desesperar, ficar de luto mesmo, de chorar e não dormir. Pois tão longe e não consegue fazer nada. Uma impotência absoluta”, diz.
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Assim, os brasileiros, que formam a maior comunidade estrangeira em Portugal, mobilizaram milhares de pessoas e conseguiram coletar 250 toneladas em doações, entre roupas, calçados, produtos de higiene, cobertores, colchões e travesseiros.
“Foi uma das maiores ações humanitárias já vistas na Europa. A gente nem esperava alcançar tantas pessoas”, conta Patrícia. Ela conta foram necessários armazéns, caminhões e empilhadeiras para acomodar as doações, além de muitas caixas e fitas adesivas para embalar os produtos. O desafio agora é enviar as doações para o Brasil, logística que os voluntários tentam viabilizar.
A montenegrina Kelly Sarmento Negruni, que vive na cidade portuguesa de Aveiro, conta que diante da dificuldade de envio, muitos brasileiros têm enviado doações em PIX para entidades que consideram confiáveis.
Campanha “Adote uma cidade”
Outra rede de solidariedade que tem sido liderada por prefeituras é a campanha adote uma cidade. A proposta é que cidades do Brasil adotem um município gaúcho atingida para prestar ajudar. Essa proposta foi disseminada pelas redes sociais, em especial, pelo humorista Badin O Colono.
Quem já ganhou um padrinho foi Bom Princípio, no Vale do Caí, adotada nesta terça-feira por Cocal do Sul (SC). O presidente da Câmara da cidade catarinense, Gilson Clemes, representando o prefeito Fernando de Faveri, esteve no gabinete do chefe do Executivo da Terra do Moranguinho para comunicar a parceria.
Em Cocal do Sul, cidade com 17 mil habitantes, o município lidera uma campanha com doações em dinheiro e de eletrodomésticos e móveis, entre outros. Também em Santa Catarina, o município de Gaspar adotou Igrejinha, Taquara e Três Coroas. Segundo o prefeito Kleber Wandall, na quinta-feira um comboio sai da cidade rumo ao Vale do Paranhana com maquinário, voluntários e psicólogos da Secretaria Municipal de Educação para auxiliar no atendimento às crianças autistas abrigadas.
Já São Sebastião do Caí recebeu na noite de segunda-feira uma carreta com cestas básicas e kits de limpeza do humorista Whinderson Nunes, material que foi entregue na terça-feira. Um novo carregamento, vindo de campanha do Paraná, é esperado para amanhã. Em São Leopoldo, caminhões com ajuda humanitária de Canarana, do Mato Grosso, chegaram no começo da tarde de terça na Rua Grande.
Ajuda que chega de caminhão vinda de Florianópolis
Morador de Florianópolis-SC, o corretor de imóveis Marcelo Maurente Goulart, 33 anos, em conjunto com outros 50 voluntários, no estado vizinho, enviaram mais de dez caminhões com doações de água, alimentos, roupas, medicamentos, produtos de higiene e limpeza. A rede, formada por pessoas sociedade civil, compra, recolhe e organiza os donativos para envio para municípios da região atingidos pelas enchentes.
“É uma força-tarefa composta por pessoas que estão ajudando de todas as formas possíveis. Quando não conseguimos o caminhão de algum empresário ou caminhoneiro fazemos uma vaquinha para alugar um. Na maioria das vezes temos conseguido de maneira voluntária. Todos os veículos são enviados cheios. A solidariedade de todos têm sido essencial”, explica.
Com o passar das semanas, Marcelo teme uma redução significativa nas doações. “É uma tendência natural, a maioria das pessoas, por questões financeiras, não consegue seguir doando por um período muito extenso. Vamos seguir ajudando e mobilizando as pessoas, mas a atuação do poder público precisará ser forte e presente no decorrer dos meses”, salienta.
Goulart é natural de Bagé-RS, mas há mais de uma década mora em Santa Catarina. “Meu primo e família são moradores de Canoas, eles perderam tudo e mesmo assim também estão engajados em auxiliar quem precisa. No primeiro dia, meu primo com um barco de pesca ajudou no resgate de cerca de 100 pessoas.”
O corretor de imóveis fala da sensação de conflito interno. “Parece nunca é suficiente. São inúmeras cidades devastadas. É como carregar um balde furado. Às vezes me sinto mal por estar em uma condição favorável. Desejo que tudo isso passe o mais rápido possível”, finaliza.
Marcos Netto, 60 anos, é exemplo de canoense que está na linha de frente na busca por doações. Associado do Rotário do Rotary Club de Canoas – Industrial – o sommelier para arrecadar recursos internacionais para compra de donativos.
“Já recebemos ajuda dos Estados Unidos, Austrália, Itália, Holanda, Argentina, Uruguai, Paraguai, entre outros países. Com isso, conseguimos comprar 1 mil colchões e uma tonelada de alimentos, que estamos distribuindo nos abrigos. A solidariedade dentro e fora do país está sendo essencial na ajuda aos desabrigados”, finaliza.
Interessados em ser voluntários ou contribuir com doações, os telefones para contato são: (51) 99955.8688 ou (51) 989000104.
Passar pela enchente não impede de ajudar
Em São Leopoldo, a Prefeitura Municipal organizou um Centro de Arrecadação com a empresa Taurus, que cedeu sua estrutura. O secretário de Cultura (Secult), Marcel Frison, responsável pela coordenação das ações, explicou como funciona.
“A gente tem captado as doações, concentramos aqui, selecionamos, organizamos e depois distribuímos aos pontos que estão entregando à população e também para o abastecimento dos abrigos que nós temos”, diz. “Assim fica mais organizado, as demandas são atendidas conforme as coisas que chegam”, completa.
Segundo Frison, o município conta com diversos doadores, mas, no momento, a prioridade é alimentação, produtos de higiene e produtos de limpeza. Ele ainda informa que a equipe do centro é composta por diversos voluntários do exército, da própria Taurus e de diversas outras localidades.
Dentre esses voluntários está a terapeuta holística Janaína Cruz, de 37 anos, moradora do centro. Mesmo com a casa atingida pelas cheias, decidiu concentrar suas energias em ajudar o próximo. “Atuo aqui desde o primeiro dia, há uma semana.
O pessoal tá bem solícito, tá bem interessante as demandas e tudo o que o pessoal tem pedido na televisão, nos veículos de comunicação, tem chegado aqui”, conta. “Hoje a gente separou bastante roupa masculina para o frio”, continua.
Colega de Janaína, a terapeuta Victória Oliveira, de 30 anos, também sente prazer em ajudar. “Era preciso fazer algo, por mais que eu não tenha sido afetada materialmente, o emocional e o mental tá junto. Então o máximo que eu posso fazer para auxiliar eu faço, e aqui tá sendo muito lindo.”
*Amanda Krohn e Taís Forgearini