O número de famílias que não autorizam a doação de órgãos dos seus familiares que estão em morte cerebral aumentou 18% em três anos e é a maior taxa de recusa dos últimos dez anos, aponta o relatório anual da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) referente ao ano de 2022, divulgado nesta semana pela instituição. Segundo o levantamento, a negativa familiar para doação de órgãos em 2019, antes da pandemia, era de 40% e, no ano passado, atingiu 47%.
“O Brasil está com uma taxa de negativa muito alta. Essa é uma questão que está relacionada com a conscientização e educação da população sobre transplantes de órgãos. Quando a população conhece e entende o processo, a importância dos transplantes e como essa doação pode salvar vidas, nós conseguimos reduzir essa taxa de recusa”, afirma Luciana Haddad, vice-presidente da ABTO. Ela lembra ainda que boa parte da taxa de recusa ocorre por motivos religiosos. “Mas o processo passa pela informação e educação da sociedade”, frisa.
Outro possível problema apontado como entrave para o aceite da família para a doação seria a falta de habilidade das equipes do hospital durante a abordagem da família. “As equipes que fazem essa entrevista passam por um treinamento sério feito pelas centrais estaduais e pela coordenação nacional de transplantes. Se ocorrem problemas pontuais, isso deve ser relatado pelo familiar para que isso seja corrigido. A gente jamais espera que haja um tratamento rude nesse momento de tanta dor e tanto sofrimento para as famílias”, diz Luciana.
José Eduardo Afonso Junior, coordenador médico do Programa de Transplantes de Órgãos do Hospital Israelita Albert Einstein, explica que a entrevista familiar em busca de potenciais doadores tem técnica e deve ser feita por pessoas especializadas em comunicação de más notícias.
“Essa abordagem jamais deve ser feita antes do diagnóstico de morte encefálica. A maior parte da recusa das famílias está relacionada com a falta de confiança no sistema de saúde e também na demora em liberar o corpo, já que as equipes de captação do órgão vem de outras cidades ou até outros estados e essa liberação pode demorar de 48 horas até três dias para acontecer”, pontua Afonso Junior.
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Potenciais doadores
Outro número preocupante apontado pelo relatório anual da ABTO é que o número de doadores de órgãos também continua abaixo dos índices registrados antes da pandemia. Apesar de a notificação de potenciais doadores estar em crescimento (foram registrados 61,9 doadores potenciais por milhão de população no ano passado), a taxa de efetivação da doação continua muito baixa (26,9%), 20% menor do que o registrado em 2019, que foi de 33%.
Segundo o relatório, apenas o Distrito Federal e mais quatro estados (Paraná, Santa Catarina, Rondônia e Sergipe) ultrapassaram os 90 potenciais doadores por milhão, sendo que apenas Santa Catarina conseguiu efetivar mais de 40% dos potenciais doadores. Por outro lado, no Mato Grosso, Maranhão, Alagoas e Pará essa taxa foi inferior a 30 por milhão. O relatório aponta também que a taxa de doadores efetivos (16,5 por milhão) foi 10% menor do que a taxa de 2019 (18,1 por milhão).
“Paraná e Santa Catarina são consideradas exemplos porque têm coordenações estaduais que fizeram a diferença na política de doação de órgãos. Em Rondônia, o Einstein fez o treinamento e capacitação de equipes para diagnóstico correto da morte encefálica e abordagem familiar por meio do programa Proadi-SUS [Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde] há cerca de quatro anos”, afirma Afonso Junior.
A não efetivação da potencial doação pode ocorrer pela negativa familiar e também por contraindicação médica para o transplante, que era de 15% em 2019, chegou a 23% no auge da pandemia em 2021 e terminou o ano com 17%, 13% acima da obtida em 2019. Outras razões incluem parada cardíaca ou morte encefálica não confirmada.
Segundo Luciana, da ABTO, a contraindicação médica envolve desde um doador com alguma infecção que poderia ser transmitida para o receptor (o que é uma contraindicação absoluta); alguns tipos de câncer que podem levar risco; condição clínica do doador muito ruim que inviabilizaria o uso do órgão. “Infelizmente no Brasil temos um grande número de possíveis doadores que acabam entrando nessa lista de contraindicações.”
Para Afonso Junior, um dos principais entraves para aumento no número de doadores de órgãos é o Brasil conseguir fazer o diagnóstico correto de morte encefálica para que essa morte seja notificada (a notificação é compulsória) e sejam identificados os potenciais doadores.
“Infelizmente o Brasil sofre com a incapacidade de alguns Estados de fazer o diagnóstico de morte encefálica corretamente. E isso ocorre por vários motivos, entre eles pela falta de médicos especialistas autorizados a fazer esse diagnóstico [neurologista, neurocirurgião ou intensivista] e ausência de exames que possam permitir ao médico chegar ao diagnóstico [eletroencefalograma, doppler transcraniano e angiografia cerebral]”, diz.
De acordo com Luciana, o Brasil ainda está muito longe de alcançar uma taxa satisfatória de potenciais doadores, o que é necessário para aumentar o número de transplantes. “Queremos aumentar progressivamente essa taxa, mas ela ainda está muito baixa. Não estamos nem comparando com as melhores taxas do mundo [nos Estados Unidos, por exemplo, a taxa de potenciais doadores chega a 70% e a de doadores efetivos 41,6%]. Se conseguíssemos chegar em 50% na taxa de efetivação de doação [hoje estamos em 26,9%] a gente conseguiria dobrar o número de transplantes realizados no Brasil. Isso já seria muito importante e é o que a ABTO vem buscando junto com os órgãos governamentais.”
Segundo Afonso Junior, o Sistema Nacional de Transplantes do Brasil é muito bem desenhado e tem processos muito claros e objetivos, mas ainda esbarra nas dificuldades estaduais – já que a implementação dos transplantes depende do gestor estadual – por isso ele acha difícil dobrar o número de doadores efetivos em menos de dez anos.
“A política de transplantes depende de pessoas interessadas. O governo federal até tenta mitigar as dificuldades estaduais por meio do Proadi-SUS, que inclui outros hospitais de referência além do Einstein. Mas é bem difícil”, diz.
Os principais transplantes
De acordo com o relatório, a taxa de transplante renal aumentou 10% em relação a 2021, mas ainda está 17,5% abaixo da obtida antes da pandemia em 2019. No caso do transplante hepático, a taxa de 2022 foi 2,8% superior à de 2021 e 8,3% inferior à de 2019. Já a taxa de transplantes cardíacos manteve-se praticamente estável em relação ao ano anterior.
Já a taxa de transplante de pulmão retornou à taxa de 2019, sendo o primeiro órgão sólido a obter tal feito. A taxa de transplante de pâncreas foi 24,4% menor que a do período pré-pandemia e também foi menor que a dos anos de pandemia. O transplante de córneas duplicou sua taxa em relação ao primeiro ano da pandemia, mas ainda está 8% abaixo da taxa de 2019.
O relatório mostra que o Brasil é o terceiro país do mundo em números absolutos de transplantes hepáticos, ficando atrás apenas de Estados Unidos e China. Ocupa a quarta posição em relação aos transplantes de rim. Somente em 2022, 33.823 pacientes entraram na fila de espera por um transplante (incluindo adultos e crianças) e 2.765 morreram enquanto aguardavam um órgão.
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