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"ELES SOFREM MUITO"

Esquizofrenia: Como é viver com alucinações e desconectado da realidade? Entenda a doença e saiba como buscar ajuda

Especialistas falam sobre a importância de buscar tratamento para a doença mental grave e crônica que atinge cerca de 2 milhões de brasileiros

Stefany de Jesus Rocha
Publicado em: 01/11/2024 às 21h:45 Última atualização: 01/11/2024 às 22h:22
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Perceber sintomas e buscar um diagnóstico médico não costuma ser uma tarefa fácil, mas ela se torna ainda mais complicada quando se trata de saúde mental. Falta de informação e compreensão, preconceito e estigmas relacionados ao tema fazem com que o paciente, muitas vezes, demore a dar o primeiro passo e começar um tratamento.

A esquizofrenia, por exemplo, uma doença mental grave e crônica caracterizada por causar dissociação entre o que é real e o que é imaginário, ainda não pode ser totalmente explicada nem mesmo pela ciência, mas quem vive com a doença precisa encontrar uma maneira de enfrentar o desconhecido.

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Entenda como a esquizofrenia se manifesta

Foto: Freepik/foto gerada por IA

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o transtorno é a terceira causa de perda da qualidade de vida entre indivíduos de 15 a 44 anos. Dados do órgão também indicam que a esquizofrenia afeta cerca de 2 milhões de pessoas no Brasil e de 23 milhões de pessoas em todo o mundo.

A doença

Delírios, distorções reais do pensamento, alucinações — principalmente auditivas —, alterações sensoriais, comportamentos e discursos desorganizados, retração social, diminuição de direcionamento de hábitos voltados para o prazer e falta de autocuidado são algumas das principais formas de manifestação da patologia, conforme explica o médico psiquiatra, professor e coordenador do curso de medicina da Universidade Feevale, Pedro Lombardi Beria.

“Os sintomas de esquizofrenia geralmente aparecem no final da adolescência ou início da idade adulta. Existe uma prevalência na população do diagnóstico de em torno de 1% ao longo da vida, e essa prevalência acaba sendo relativamente homogênea ao redor do mundo: grande parte dos países acaba tendo prevalência de esquizofrenia de aproximadamente 1% em toda a população”, conta.

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Macus Levi Lopes Barbosa, psicólogo, professor e coordenador do mestrado em psicologia da Feevale, ressalta que o início do transtorno costuma ser bastante desafiador para os pacientes. “Quando a pessoa tá numa fase mais inicial, ela começa a ter algumas alucinações, alguns delírios, ela muitas vezes esconde isso, não fala porque se sente envergonhada e até assustada com o que tá acontecendo.”

Entendendo os sintomas

Quem não tem esquizofrenia, consegue identificar que os pensamentos são apenas ideias que passam pela nossa cabeça. Uma pessoa sem a patologia, consegue distinguir quando é um pensamento seu ou quando outra pessoa está falando com ela. Mesmo quando elas têm pensamentos negativos, continuam em contato com a realidade.

O psicólogo exemplifica: “a pessoa começou a se atrasar para chegar, enfim, será que se machucou? Será que bateu o carro? O que aconteceu?”, alude Barbosa sobre questionamentos que podem rondar pessoas sem o diagnóstico nessas situações. “Há uma tendência da gente de pensar o pior. Isso faz parte do nosso processo adaptativo. Mas nós [quem não tem esquizofrenia] pensamos uma coisa negativa e depois a gente diz ‘ah, que bobagem, fiquei pensando o pior e nem foi o pior’. A gente consegue”, explifica.

Por outro lado, a pessoa que vive com a doença não consegue distinguir o que é real do que não é. “Quando elas têm pensamentos, esses pensamentos, muitas vezes, soam na cabeça dessas pessoas como se fossem vozes, vozes de outros. Tem uma voz falando na cabeça. E essas vozes têm, de maneira geral, uma característica de serem muito poderosas”, argumenta Barbosa.

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“É difícil para essas pessoas saberem se são elas que estão pensando essas coisas negativas ou se são vozes”, afirma. “Então, essas pessoas são muito mais frágeis porque elas são mais suscetíveis a todo tipo de ilusão que tem a ver com as alucinações que pode acontecer na cabeça delas.”

Assim, quanto mais o paciente estiver dominado pelos sintomas, mais essas “vozes” vão comandar a vida e as ações dele. “Para essas pessoas, quando elas pensam algo negativo, aquilo é muito real. Os pensamentos delas ganham um status muito poderoso, muito impactante para elas.”

Sobre a origem, Barbosa diz que o transtorno não é psicológico, e sim, uma alteração da personalidade e de comportamento. “As causas desse transtorno são muito mais de origem orgânica, por isso que a medicação é tão importante. Porque há uma falha no cérebro dessa pessoa de conseguir processar, enfim, de alguma maneira organizar a realidade”, ressalta. “Eles sofrem muito. Sofrem muito, com certeza.”

Desenvolvimento da esquizofrenia

Em relação ao que leva uma pessoa a desenvolver a doença, o psiquiátra Beria ressalta que esquizofrenia é considerada multifatorial. “Existem diversos fatores que podem contribuir para o desenvolvimento do transtorno. Um deles, que certamente é bastante importante, é a questão de herança genética ou histórico familiar.” 

A predisposição genética, contudo, não é uma certeza de que a pessoa terá o transtorno, já que isso depende também de aspectos associados a estressores relacionados à vivência de cada um, como traumas emocionais, principalmente se vivenciados na infância. 

“Esses estressores também podem ser, por exemplo, infecções ou outras condições perinatais, próximas ao nascimento, ao parto ou durante os primeiros anos de vida, que possam afetar o desenvolvimento e a saúde cerebral”, destaca o médico. “E também exposição ao uso de substâncias, principalmente a cannabis, maconha. O uso crônico de maconha, principalmente nas fases iniciais da adolescência e início da idade adulta, aumenta o risco de desenvolvimento de esquizofrenia.”

Diagnóstico e tratamento

O diagnóstico é feito por entrevista e avaliação médica, onde é observado se o paciente apresenta sintomas específicos. Se esses indícios persistem por pelo menos seis meses sem outra causa justificável, o especialista pode concluir a investigação.

A doença pode se apresentar de diferentes formas, variando conforme o conteúdo da psicose que o paciente tem e pela intensidade dos sintomas, segundo o psiquiatra. Em todas, contudo, o tratamento precisa ser contínuo ao longo da vida. O uso de antipsicóticos é a principal forma de controlar a doença, pois eles vão ajudar a inibir os delírios e alucinações.

“De maneira nenhuma o paciente esquizofrênico pode ser tratado sem medicação. Ele precisa de medicação. Se ele puder fazer só uma coisa, a escolha é medicar. E, se possível, ele ser medicado e também fazer acompanhamento psicológico”, destaca Barbosa, pontuando que é muito importante que a medicação não seja interrompida.

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O mais indicado é que a pessoa passe por um tratamento multidisciplinar, o que a leva a ter menos recaídas e consiga passar períodos maiores sem apresentar sintomas. O psicólogo reforça que a psicoterapia vai ajudar o paciente a avaliar os pensamentos para que ele possa verificar o quão real é aquilo que ele está ouvindo ou vendo.

“A gente não tem as respostas prontas. E não existe resposta que funcione para todos os pacientes. Mas, junto com o paciente, a gente vai criar uma estratégia para resistir a essas vozes. Para desclassificar essas vozes”, diz.

A vida com esquizofrenia — sob a visão de especialitas

Quando os sintomas estão muito presentes, é difícil para a pessoa com esquizofrenia socializar e realizar tarefas que parecem básicas do dia-a-dia. Com o tratamento, no entanto, a tendência é que o quadro melhore e o paciente consiga retomar a funcionalidade da vida.

“O paciente que vem em tratamento estável, ele pode recuperar diversas funções do cotidiano, mas enquanto estão acontecendo sintomas, a pessoa pode apresentar muitas dificuldades em função dos sintomas alterarem a capacidade de discernimento, alterarem a capacidade, por exemplo, de dirigir, de trabalhar, de operar uma máquina no trabalho”, explica o médico.

Ainda que com ajuda de medicamentos e terapia o paciente consiga diferenciar os pensamentos dele dos da “voz” e passe, então, a ter certo controle sobre isso, a vida ganha certa normalidade, mas com limitações. O uso de substâncias (como álcool e drogas), por exemplo, não deve acontecer, para evitar o retorno dos sintomas. Também é preciso cuidar as situações a sua volta, no intuito de se proteger de estressores.

“Na verdade, elas podem ter uma vida que eu diria assim, muito próxima do normal, mas não uma vida completamente normal. Sempre vai ter que estar muito atenta, muito cuidadosa. Embora elas possam ser muito funcionais, bastante funcionais, não quer dizer que elas vão ter uma vida totalmente normal”, fala o psicólogo. 

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Os especialistas reforçam que os sintomas psicóticos não são presentes o tempo todo na vida do paciente. As crises são periódicas e, com isso, as pessoas diagnosticadas com a doença têm momentos de maior e outros de menor dissociação. Assim, pelo risco de desenvolver uma nova crise, principalmente se houver falha no tratamento, é indicado que pacientes com esquizofrenia fiquem distantes de instrumentos que possam oferecer perigo a si ou aos outros, como armamentos.

“Não é recomendado que o paciente com esquizofrenia tenha acesso a armas de fogo em função das características psicóticas do transformo”, detalha o psiquiatra. Beria ainda cita que apesar da agressividade não ser um sintoma comum da patologia, é possível que o paciente fique mais ofensivo dentro do comportamento desorganizado. Nesses casos, as alucinações auditivas podem ter conteúdos ameaçadores e violentos — enquanto a pessoa luta contra aquilo.

“O que acontece? Não há uma explicação por que essa natureza de pensamento, por que tem esse tipo de pensamento, especificamente”, pontua Barbosa. “Mas várias pessoas esquizofrênicas não apresentam qualquer perigo. Elas apenas são mais desorganizadas, enfim. Elas não têm vozes que dizem para elas fazer coisas violentas ou bizarras, ou estranhas. Elas simplesmente têm essas vozes. Essas vozes, às vezes, conversam com elas, trocam ideia com elas”, conclui.

Como buscar ajuda

É importante que as pessoas ao redor do paciente também o ajudem a buscar tratamento, seja ao perceber sintomas iniciais ou para incentivar ele a continuar com a medicação e terapia.  

“Se no trabalho ou na família alguém perceber de alguma forma ou a pessoa comentar sobre alguma coisa que dê a sugestão de que ela esteja tendo esses sintomas — algumas alucinações, alguns delírios, pensamentos muito distorcidos, que não estão conectados com a realidade —, é importante levar essa pessoa para um profissional de saúde, que pode ser tanto um psicólogo quanto um psiquiatra”, orienta Barbosa. 

As pessoas que forem diagnosticadas com esquizofrenia podem receber tratamento gratuito no Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Lá, o paciente será acompanhado por uma equipe multidisciplinar, que conta com assistência social, terapia ocupacional, enfermagem, psicólogo e psiquiatra. Assim, o paciente terá a evolução do quadro assistida e medicação disponibilizada.

OPINIÃO: Esquizofrenia armada. Até quando?

Para ser atendido no Caps da cidade ou da região em que reside, a pessoa pode procurar diretamente o serviço ou ser encaminhado pelo Programa de Saúde da Família. Há também a possibilidade de encaminhamento por qualquer serviço de saúde. A pessoa pode buscar pelo auxílio sozinha ou acompanhada.

“E a família é pra ajudar, né, a apoiar e, de alguma maneira, antecipar e minimizar estressores que possam ajudar o paciente a se desorganizar”, finaliza o psicólogo.

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