Os laticínios que a família Dias entrega na merenda escolar em Sapiranga não dependem apenas da produção dentro da agroindústria. Até que o leite se transforme em queijo ou iogurte e chegue à mesa do consumidor, um longo caminho tem de ser percorrido.
Essa jornada começa pelo solo. É na lavoura que brota o alimento que sustenta os animais que vão dar a matéria-prima para o casal de produtores rurais, Leandro, 48 anos, e Andreia Dias, 40, produzir os laticínios que são os carros-chefe da agroindústria.
Mas este ciclo de produção, que envolve tanto a agricultura quanto a pecuária, sofreu uma grande avaria entre o final de abril e o início de maio deste ano. As chuvas que assolaram o Rio Grande do Sul destruíram cidades e geraram prejuízos bilionários. Com o setor primário não foi diferente.
Levantamentos mostram a dimensão o impacto da chuva no solo
Os solos para agricultura foram severamente afetados, conforme mostram dados divulgados pela Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (Seapi). Por isso, está em curso um grande esforço conjunto para a recuperação dos solos. É para melhorar condições como a da família Dias, por exemplo, além de tantas outras que dependem do campo para tirar seu sustento.
Em levantamentos feitos pela Emater/RS-Ascar nas 12 regiões administrativas, foram verificadas perdas de fertilidade e erosão hídrica em solos de 405 municípios. Isto equivale a 2.706.683 hectares. Esses números fazem parte do relatório sobre os impactos das chuvas e cheias extremas no Rio Grande do Sul em maio de 2024, divulgado em 3 de junho.
A partir do conhecimento dos problemas, iniciaram-se os trabalhos para recuperar a produção do setor primário gaúcho. Os primeiros resultados no que diz respeito à recuperação dos solos já começam a aparecer.
Práticas começam como ações pontuais e também análises do cenário geral
De ações pontuais, como trabalhos de campo a exemplo do que a equipe da Emater de Sapiranga realizou na propriedade da família Dias, até ações conjuntas entre pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e especialistas da Seapi, diversas ações foram colocadas em prática. A parceria entre universidade e poder público resultou numa série de Notas Técnicas (a primeira já foi publicada) que pretendem nortear o processo de recuperação de solos.
“O processo de recuperação dos solos será trabalho desafiador, pois precisamos recuperar a saúde do solo não somente a parte química do solo, mas também a parte física e biológica”, destaca o pesquisador do Departamento de Defesa Vegetal da Seapi, e coordenador do Programa ABC , Jackson Brilhante, que atuou na elaboração da Nota Técnica 1. Além de verificar a situação das áreas de plantio e traçar um plano de recuperação, especialistas são unânimes em considerar que o cultivo da terra precisa ser conservacionista.
“Hoje, o Plano ABC RS é a política pública de adaptação às mudanças climáticas no setor agropecuário gaúcho. Todo esse processo de recuperação dos solos do Estado passa pela adoção das tecnologias do Plano ABC RS. São tecnologias que promovem uma maior resiliência para os sistemas de produção agropecuários”, comenta Brilhante sobre o programa do governo do Estado que pretende adaptar a produção primária às mudanças climáticas.
Conservação física foi a escolha em Sapiranga
Erosões laminar, de sulco e voçorocas são algumas situações detectadas nas áreas de plantio após as chuvas intensas e enchentes de maio. Essas formações, segundo o engenheiro agrônomo da Emater de Sapiranga, Mateus Farias de Mello, são responsáveis por perdas “imensuráveis” nas lavouras.
A dimensão “incalculável” destes prejuízos não reside apenas no aspecto financeiro, mas também na saúde e fertilidade do solo. “Aqui a gente detectou, com uso de aparelhos, mais de 8 centímetros de perda de solo em algumas áreas de lavoura, de solo fértil com vida, e isto é incalculável”, resume Mello.
Passado o período de chuva, equipes da Emater iniciaram um processo de recuperação das áreas destruídas. Iniciou-se um trabalho voltado também à preservação dos solos, dando ênfase a técnicas conservacionistas. No trabalho realizado com produtores rurais de Sapiranga, em uma área alta, próximo do Morro Ferrabraz, na localidade de Picada Verão, onde está propriedade da família Dias, foi trabalhada a técnica de curvas de nível.
“Geralmente se preconiza cobertura de solo com palhada, mas com efetiva cobertura. Mas como o evento climático é extremo, houve áreas com cobertura que também tiveram perda de solo. Diante dessa situação, houve a decisão de retornarmos a orientação e o esclarecimento de técnicas físicas de conservação de solos”, explica Mello. Dessa forma, no dia de campo, que reuniu 14 produtores rurais, foi abordada a contenção física em curvas de nível.
Formação contínua para produtores rurais
O trabalho que começou a ser desenvolvido em Sapiranga pretende ser continuado. De acordo com Mello, a periodicidade dos encontros, como o que ocorreu em Picada Verão, ainda está sendo definida. Mas já se sabe que após a Expointer deverá ocorrer a próxima capacitação. Mello comenta também que ações semelhantes a que ocorreu no município estão sendo organizadas em outras cidades, como Igrejinha e Taquara, por exemplo, onde são promovidos debates contínuos com os agricultores.
Curvas de nível para manutenção das plantações
Mello reforça a ideia de que as capacitações sirvam para que os agricultores tenham autonomia de empregar técnicas conservacionistas em suas propriedades. No caso das curvas de nível, tecnologia escolhida para a capacitação na região do Morro Ferrabraz, os agricultores aprenderam sobre os tipos mais adequados conforme o terreno.
“Dependendo da inclinação se vai adotar os de base larga ou base média”, cita. O engenheiro agrônomo comenta que durante a elaboração das curvas de nível no terreno, antes de finalizá-las, houve um período de chuvas, o que serviu para testar sua eficácia. “Logo em seguida tivemos chuvas pesadas e fomos lá olhar o resultado, ainda não tínhamos feito a finalização da curva, mas percebemos que já estava sendo suficiente para conter o solo. Já estava detectada a contenção.”
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Silagem e cobertura de solo na propriedade da família Dias
Na propriedade de Leandro e Andreia Dias, onde foi realizado o dia de campo pela Emater, existe um ciclo completo de produção. A família é proprietária de uma agroindústria de laticínios, tendo o queijo e outros derivados como produtos. As plantações na propriedade servem principalmente para alimentar os animais.
Leandro conta que cultiva pastagem e milho para silagem. As chuvas de maio prejudicaram o solo, causando bastante erosão, mas foi graças à armazenagem de alimentos que o gado leiteiro ficou abastecido. “Geralmente, o estoque é para dois anos”, assinala Leandro.
Mas com a terra devastada pela água, houve a preocupação com alto consumo do material estocado. “Essa vez foi o dobro do trato no cocho no inverno.” A capacitação na propriedade ocorreu em junho, quando, após o trabalho de recuperação do solo, foram plantadas as forrageiras. E a partir de agosto começa o plantio de milho. “A ideia é fazer preparação de curvas de nível em toda a área da propriedade”, comenta Leandro.
Criação de gado leiteiro sustentada pela agricultura
Os produtos da Agroindústria Familiar de Derivados de Leite Sabor do Campo, empresa comandada por Leandro e Andreia Dias, são todos feitos dentro da propriedade. O queijo é o carro-chefe, mas também tem leite pasteurizado e iogurte. Os produtos possuem o SIM do município e são entregues também na Assistência Social.
Estudo oferece parâmetros para recuperação de áreas
Uma das primeiras ações práticas na direção da retomada das áreas para agricultura foi a publicação da Nota Técnica 1 – Orientações para recuperação do solo gaúcho após enchente. Trata-se do primeiro volume de uma série de publicações que pretendem servir de embasamento para técnicos trabalharem na recuperação de áreas de plantio.
O material foi elaborado a partir de estudos de campo realizados por profissionais da Seapi, Emater/Ascar-RS e Ufrgs. De forma conjunta, equipes das três instituições têm visitado propriedades desde o final de junho. Até agora foram visitadas duas regiões. No Vale do Caí: Bom Princípio e Feliz. No Vale do Taquari: Muçum e Roca Sales.
“Ter a academia e extensão rural juntas, neste processo, é fundamental para realizar um diagnóstico mais assertivo. No RS temos universidades de referência internacional na área de ciência do solo e que, certamente, vão contribuir no processo de recuperação”, comenta Jackson Brilhante.
Ele qualifica as situações vistas até agora como “muito desafiadoras”. Cita casos como áreas com 4 a 5 metros de depósito de areia, propriedades onde houve remoção da camada mais fértil do solo ou ainda áreas de plantio convertidas em “chão batido”, tamanha a compactação do solo.
“Nas propriedades, a primeira ação que fazemos é realizar o diagnóstico da fertilidade do solo através da coleta de amostras em diferentes pontos da propriedade, pois em cada ponto pode ter havido deposição de areia (sedimento) e outros onde houve perda de solo. Então, precisamos conhecer a composição química desses solos”, explica.
Professor de Química do Solo do Departamento de Solos da Faculdade de Agronomia da Ufrgs, Tales Tiecher, que participou do projeto que culminou com a Nota Técnica, explica que os impactos das chuvas de maio nos solos são diversos e complexos, em alguns casos até envolvem mais de um tipo de impacto na mesma propriedade.
“Essa situação extraordinária levanta muitas dúvidas e questionamentos sobre como e onde começar. A nossa tentativa por meio desse material foi nortear aspectos fundamentais para recuperação das áreas impactadas”, diz Tiecher.
LEIA AQUI A ENTREVISTA COMPLETA: Pesquisador da Ufrgs fala sobre o trabalho para recuperação dos solos no RS
Sistemas alinhados ao Plano ABC+
No Plano ABC +, o Sistema Plantio Direto (SPD) é tratado como a principal tecnologia conservacionista. Brilhante explica que esse sistema de produção tem como as principais diretrizes o plantio em nível, revolvimento restrito a linha de plantio, cobertura permanente do solo com palha e plantas e a rotação de culturas.
“O produtor ao realizar essas três práticas vai proporcionar a recuperação do carbono do solo que é o principal indicador de um solo saudável”, aponta o pesquisador. Brilhante pondera que para algumas situações essas práticas ainda não são suficientes.
“O produtor poderá utilizar os terraços que têm um papel importante no controle do escoamento superficial, principalmente, na ocorrência de chuvas de alta intensidade como temos observado. Os terraços também auxiliam no armazenamento e distribuição de água na propriedade”, completa.
O Plano ABC+RS possui outras tecnologias que podem auxiliar, como bioinsumos, integração lavoura pecuária floresta, sistemas agroflorestais, florestas plantadas, práticas de recuperação de pastagens degradadas e sistemas irrigados.
Técnicas conservacionistas devem ser usadas de forma complementar
As técnicas conservacionistas de solo na agricultura não são novidade, mas ganharam relevância por que são consideradas tecnologias que se ajustam ao enfrentamento das mudanças climáticas. O plantio direto, por exemplo, já foi apontado em um estudo realizado entre 2013 e 2016, na área experimental do Centro Estadual de Diagnóstico e Pesquisa em Sementes (CESEM-DDPA), pertencente à Seapi, em Júlio de Castilhos, na região Central.
“Há necessidade de se manejar adequadamente o solo, tanto para a proteção dele quanto para a recuperação, melhoria e manutenção da capacidade produtiva de solos degradados”, aponta a pesquisadora Madalena Boeni, que liderou o estudo.
Ela cita que outras técnicas conservacionistas complementares ao plantio direto, como semeadura em contorno, cultivo em faixa, canal vegetado, terraceamento, entre outras, também devem ser levadas em consideração e adotadas conforme a área. “A simplificação do plantio direto ou o uso isolado de uma ou outra prática de cultivo pode não ter o mesmo efeito que um conjunto de práticas tem de potencializar a proteção do solo em casos de eventos climáticos extremos”, analisa.
LEIA A ENTREVISTA: Madalena Boeni explica detalhes sobre o experimento e sobre sistemas conservacionistas
Qualidade do solo passa por uso adequado
Para Madalena, o manejo adequado do solo deve permitir que se tornem mais estruturados e permeáveis. “De forma a maximizar a infiltração e o armazenamento de água no solo, tornando-a mais disponível às plantas em situações de estiagem, além de absorver uma maior quantidade de água em situações de elevadas e intensas precipitações”, argumenta.
A visão da pesquisadora vai ao encontro do que pensa Mello sobre o objetivo que pretende alcançar com as capacitações. “Com solos permeáveis, na grande região onde ocorreu a chuva, de Santa Maria para cá, uma quantidade significativa de água não teria chegado nos rios. A descompactação de solo e a contenção de água superficial são dois temas muito importantes”, observa Mello.