Segundo maior produtor orgânico do País, o Rio Grande do Sul é destaque nacional quando o assunto é entregar verduras, frutas, mel entre outros produtos feitos sem uso de agrotóxicos, sementes transgênicas e outros estimulantes químicos. Só que o segmento lácteo ainda é um desafio difícil de transpor. As dificuldades vão do espaço necessário para os rebanhos e passam pela alimentação dos animais.
Em todo Estado, apenas cinco, das mais de 3,4 mil propriedades rurais dedicadas à produção orgânica têm no seu escopo produtivo leite e derivados, representando apenas 0,14% de todo volume de produção orgânica gaúcha. Embora pequena, a produção existe e tem demanda e Novo Hamburgo ganha destaque.
Na cidade estão localizadas duas das propriedades gaúchas autorizadas e que produzem leite e derivados de forma orgânica. É na área rural do bairro Lomba Grande que a família Barbaro da Rosa, mantém o Sítio Amigos da Terra. Agricultores de longa data, eles decidiram aderir ao formato de produção orgânica há quase 30 anos, após sofrerem na pele as consequências do uso indiscriminado de agrotóxicos.
“Meu pai havia se intoxicado no plantio de soja com veneno, há 30 anos não usavam EPIs, e ele aplicava veneno direto no soja”, relembra Denise Barbaro da Rosa, 40 anos, que até hoje trabalha ao lado dos pais Armindo Hasper da Rosa 63 anos, e Erneci Barbaro da Rosa, 60 anos.
Na época do acidente, a família vivia na cidade de Alecrim, no Noroeste do Rio Grande do Sul. “Meu pai foi parar no hospital”, lembra Denise sobre as consequências do uso de agrotóxicos em EPI. O susto da intoxicação dentro de um processo tradicional da lida no campo serviu como um impulso para mudar a rota de vida e de trabalho.
Foi em 1995 que eles entraram em uma cooperativa de produção orgânica, que resistiu até 2016. Com o fim da organização, a família passou a se dedicar sozinha a este tipo produção vindo a construir uma agroindústria familiar.
Hoje, a produção de iogurte é o carro-chefe da empresa familiar, que conta com um rebanho de 14 vacas distribuídas em uma pequena propriedade de 12 hectares, dos quais 8 são arrendados pela família Barbaro.
Rebanho tem manejo diferenciado na produção orgânica
Quem atua com produção de origem animal percorre um caminho mais complexo para conseguir o selo que reconhece de forma oficial a produção como orgânica. Este acaba sendo um dos primeiros desafios de quem tenta este tipo de produção. “Nosso sistema são animais a pasto, recebem homeopatia, a produtividade é mais baixa, são animais livres”, resume Denise em poucas palavras o modelo de produção da propriedade familiar. Diferente dos pais,, ela nem chegou a conhecer outra forma de produção que não a orgânica.
Mas a professora do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva Faculdade de Veterinária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e membro da Comissão da Produção Orgânica do Rio Grande do Sul (CPOrg-RS), Márcia Monks Jantzen, explica que, diferente de produções de frutas e verduras, quando se trata de produtos de origem animal, o caminho é mais longo para conquistar o reconhecimento.
“Aqui no Rio Grande do Sul, nós temos realmente muito poucas propriedades de criação animal orgânica. Ela requer mais etapas e tem muito, muitos outros fatores envolvidos para que aquela produção seja reconhecida e certificada como orgânica”, explica Márcia, que vê nessa dificuldade maior um dos motivos para o segmento ainda não ter tantos adeptos.
A primeira diferença diz respeito à alimentação dos animais, pois se enquanto produções leiteiras tradicionais lançam mão de uma série de estimulantes químicos para ganhar em produtividade e produção, a pecuária de leite orgânico rejeita este tipo de método. “Não pode ser fornecido nenhum grão transgênico, então esses grãos que vão compor a ração também precisam ser certificados como orgânicos”, explica a professora da Ufrgs.
Outros aspectos do manejo do rebanho também mudam, especialmente nos cuidados com saúde. “Não pode usar antibiótico, nem carrapaticida, enfim, não pode usar várias coisas. Mas vacina sim, então, aquelas doenças que têm vacina específica e também as obrigatórias todos os rebanhos de orgânico eles fazem”, explica o veterinário extensionista rural Assistente Técnico Regional de Sistemas de Produção Animal da Emater Porto Alegre, Carlos Roberto Vieira da Cunha.
Sem estímulos artificiais para ganhar produtividade
Mesmo com essas diferenças no tratamento, os dois veterinários garantem que os rebanhos podem ser saudáveis utilizando tratamentos com menos produtos químicos. No caso do Sítio Amigos da Terra, a alternativa adotada é a utilização de tratamentos homeopáticos além da dispensa de qualquer produto que busque modificar a produtividade de forma química. “Não tem estímulos para aumentar leite, nosso objetivo é melhorar o rebanho e a genética dos animais e melhorar cada vez mais a alimentação”, explica Denise.
A professora Márcia explica que a questão que envolve o uso de antibióticos não é uma proibição total. O que acontece é um regramento mais rígido em relação a este tipo de tratamento. “Quando acontece algum sofrimento animal, ou ele está em algum processo de infecção bacteriana muito severo ele é tratado com o antibiótico. Mas tem toda uma sistemática, a própria certificadora tem que ser avisada, o animal vai ficar separado da produção e o período em que esse animal vai deixar de fornecer o leite é o dobro do que o que se faz na produção convencional.”
Essas diferenças tornam maior o desafio para garantir a sanidade dos animais e evitar qualquer tipo de contaminação, tanto no leite cru quanto nos derivados. Os custos de produção também aumentam, enquanto como resposta a produtividade reduz, mas mesmo assim o mercado tem sido favorável para quem busca este tipo de produção. “O custo de produção é mais alto, devido a alimentação e a produtividade mais baixa, fica um pouco acima ainda o preço final”, resume Denise, que atua na ponta da cadeia.
Aposta no orgânico é vista como oportunidade de democracia no campo
Em um mercado com potencial de crescimento, seria natural esperar a entrada de grandes empresas nesta competição. Cunha relata que esta já é uma realidade em outras regiões do País. “Algumas empresas maiores de laticínios já nos procuraram querendo saber sobre a questão de leite orgânico. No meu ponto de vista, as empresas pagariam até 50% a mais no valor do leite para ele ser orgânico certificado”, considera o extensionista da Emater.
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A professora da Ufrgs aponta que a produção orgânica é uma oportunidade justamente para melhorar a rentabilidade para agricultores familiares. “Podemos ter uma grande oportunidade para os pequenos produtores produzirem esse leite e, ao invés de venderem o leite in natura para outras agroindústrias ou grande empresas eles mesmo podem ter suas agroindústrias, ou se organizarem entre pequenos produtores e fazer esse beneficiamento, porque vão estar agregando valor a esses produtos”, analisa Márcia Monks Jantzen.
Foi esta a estratégia adotada pelo Sítio Amigos da Terra, que apesar de venderem o leite cru, tem como carro-chefe de vendas produtos derivados. “Nosso carro chefe é o iogurte natural desnatado, mas também vendemos iogurtes com sabor, nata, doce de leite e queijo colonial”, relata Denise.
A equipe do sítio é exatamente o modelo familiar. Junto com Denise e os pais também trabalham o esposo, Marcos Rosa, 44 anos, o irmão Éder Barbaro da Rosa 34 anos, e a cunhada Deisi Cristina da Silva 33 anos.
Mercado consumidor de lácteos
Uma reclamação recorrente do setor leiteiro tradicional é a questão dos preços pagos ao produtor. Ao longo de 2024 o setor tem comemorado a melhora de mercado, no qual em nenhum momento o preço pago pelo litro do leite chegou a R$ 3. Enquanto isso, nas feiras de orgânicos, o litro produzido pela família é vendido a R$ 13, o que demonstra um público disposto a pagar mais caro pelo produto.
Demanda crescente aliada com uma baixa produção, especialmente no Rio Grande do Sul, pode ser um incentivo para que mais agricultores apostem na produção orgânica de leite e derivados. O consumidor de orgânicos está disposto a pagar o preço, uma vez que reconhece o valor do produto.
“Produtores que conseguem atingir a certificação orgânica na parte de laticínios vendem toda a produção com facilidade, e se tivesse mais venderia mais. Tem vários mercados que a gente não acessa porque não tem volume”, destaca extensionista rural Assistente Técnico Regional de Sistemas de Produção Animal da Emater Porto Alegre, Carlos Roberto Vieira da Cunha, que relata dificuldade em encontrar produtos lácteos mesmo em feiras de orgânicos, principal mercado de escoamento deste tipo de produção.
Para além do mercado consumidor, escolha da família tem identificação com o meio ambiente
Incentivados pela experiência negativa com o modelo tradicional de agricultura, fazendo a família fazer uma mudança radical. “Essa mudança foi motivada pela busca dos meus pais por um modo de vida mais saudável, já que meu pai havia se intoxicado no plantio de soja com veneno, e também a oportunidade para filhos estudarem”, lembra Deise, que ao longo dos anos atuou no campo sempre no modelo de produção orgânica.
Esta ligação diferente com a produção agrícola traz um incentivo diferente para a continuidade de seguir neste modelo produtivo. “É nosso objetivo de vida, acreditamos na produção orgânica e agroecológica e vale muito a pena”, resume Denise explicando por que mesmo com os desafios com a produtividade menor e os custos maiores, a família não abandona o modelo.